segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Desmoronamento

Sempre ouço meus amigos falarem desse ou daquele filme “bárbaro”, dessa exposição “chocante”, “incrível”, ou daquela produção teatral ou musical “fascinante”.  Nem vou destacar esses adjetivos, que seria assunto para outra oportunidade, mas sempre fico estupefacta, pois percebo que as pessoas [que se acham parte da inteligentsia da modernidade cyberinformatizada] repetem incessantemente o que leem nas revistas especializadas em arte, nos jornais ditos “informativos” ou mesmo repetem coisas que ouviram algum  intelectual ou artista apontar como  o melhor, o mais in a ser apreciado – ou consumido.

Mesmo nas revistas nas quais antes eu encontrava bons artigos, a crítica de arte parece transformar-se em caricatura patética: parece haver necessidade de absorver a imensa e poderosa indústria cultural que sorrateiramente vai substituindo ícones e descartando os “melhores do verão passado” pelos “melhores desse verão” em detrimento da essência, da qualidade ou da consistência do trabalho. Assim, muitas vezes nos deparamos com filmes, peças e exposições lastimáveis que foram divulgados como “o máximo” e que arrastam milhares de espectadores por suas pretensas “qualidades” artísticas – e que “misteriosamente” desaparecem tão rápido quanto suas aparições na mídia.

Um desses casos é o filmeco “Gravidade”, o que não posso sequer chamar de cinema. Se algum mérito há nesta produção são apenas as imagens da Terra,  filmadas do espaço, e que são realmente belíssimas. No mais, o filme não tem roteiro, não se sustenta, é cheio de falhas perceptíveis, é uma sucessão ridícula de catástrofes [para mim não passa de um filme catástrofe, daqueles muito em moda nos idos anos 1970, como Inferno na Torre, Aeroporto, Poseidon, Terremoto etc, a diferença são as poucas locações e o preço baixo da produção, finalizada digitalmente], os diálogos são infames, a fantasia para um final catártico é enfadante e inverossímil, enfim, uma produção de péssima qualidade e que foi aclamada como “filme da década”. Francamente, nem dá para se estender na absurdidade dessa afirmativa.

Quando vejo meus amigos inteligentes, sensíveis entrando na onda do marketing desse lixo cultural eu sinto tristeza. Tristeza, pois me parece que nos aproximamos de um período  obscuro e de desmoronamento do pensamento, da reflexão.  Parece-me que as pessoas vão absorvendo o que foi escolhido para ser o cult da vez, sem nenhum questionamento, de maneira patética e estúpida. Lembro-me então que assisti a uma palestra há uns 10 anos  –  embora eu não me lembre quem era o palestrante, faz tempo, foi um professor da USP, se não me engano num dos ciclos Mutações – e ele dizia que coisas desse tipo só provam o desmoronamento da nossa civilização. Ele apontava uma opinião do Roberto Rosselini, a qual busquei  e resumo a seguir:

“a partir do momento em que se dá o desmoronamento de uma civilização dá-se paralelamente o desmoronamento da arte, o desmoronamento da linguagem, o desmoronamento do pensamento. [...] Uma civilização traz, como resultado, a sua arte, traduzida em monumentos, obras de grandes poetas, ilustres artistas e pensadores em diversas áreas. Mas quando a civilização deixa de existir, ou quando está em crise, a arte morre ao mesmo tempo, ou mesmo antes”.

Analiso essas reflexões e penso na nossa sociedade pautada numa aceleração imposta e numa apreciação fictícia de novas e glorificadas tecnologias [que em geral são substituídas – antes mesmo de serem compreendidas – por outras ainda mais novas, ad infinitum] como se fosse o máximo da “evolução” humana.  E então penso que a nossa é uma época na qual presenciamos exatamente o contrário do que disse Rosselini:  vemos o desmoronamento do pensamento, da linguagem e da arte sem que a civilização desapareça em primeiro lugar.

Não podemos negar que, para existir, uma civilização precisa da arte, pois a arte é o que move a verdadeira essência do ser humano. O homem não vive sem arte. E a arte, para existir, necessita de ideias muito claras, além de trabalho, pesquisa, aprofundamento e emoção. Atualmente, quando olhamos bem de perto o que se chama de arte, percebemos que não há nada que a caracterize e a faça permanente, durável: o fenômeno que faz parte da nossa civilização, do nosso tempo – que é o fenômeno da técnica e da aceleração técnica – destitui, despreza e mata a emoção e a imersão interior necessárias à criação. Muitos  artistas hoje não fecundam, não criam, não perpetuam, não provocam emoções, mas geram e trabalham para o resultado imediato de sua suposta arte: querem produzir em grande escala e vender a sua “arte”, desejam vender sua imagem e a imagem do seu trabalho, ou seja, querem estar dentro do mercado com sua “arte”, da mesma maneira que se vendem roteiros turísticos fantásticos, produtos de luxo  para privilegiados, ou qualquer outro produto.

O que define é o merchandising, numa corrida insana em que os artistas mais espertos dessa temporada dão a “rasteira” nos  artistas espertos da temporada passada.  O que é um absurdo, como se não houvesse espaço para a arte de todos, uns “tomam” o lugar dos outros, numa disputa absolutamente gratuita e insana, em que o menos válido é o trabalho artístico, que pode ser qualquer porcaria, desde que leve um rótulo de “genial”, “fantástico”, “estupendo” dado por algum expert ou pela mídia institucionalizada, previamente paga para tal, e que garante o resultado:  a mídia e a divulgação garantem o sucesso total de muito lixo.


Às vezes penso que estamos apenas perdidos num limbo tecnicista, mercadológico e absurdo: presenciamos o desmoronamento de tudo o que é vital nas artes em prol de uma modernização acelerada e sem rosto, estéril, e que “seleciona” os artistas pelo seu poder de influência e penetração, ou pela grana envolvida nos projetos. É óbvio que não podemos comparar a época atual com o século passado ou a antiguidade. E também não estou dizendo que o produto artístico não possa ser valorado e vendido, mas que o mercado se tornou a meta, independente de qualquer outra coisa. Também não podemos esquecer que há artistas verdadeiros que sobrevivem soturnamente nos subterrâneos paralelos ao mercado [sim, felizmente eles existem e fazem uma arte genuína, verdadeira],  mas é evidente que a nossa civilização, o pensamento e o homem estão em perfeita decadência, pois uma arte que dependa exclusivamente de um bom merchandising [ou seja, muito dinheiro e influência:  a simbiose perfeita] e que desaparece em seguida, sem deixar rastros, só pode ser a arte da decadência, do desmoronamento, da leviandade. 

                                                   The Wounded Angel, Hugo Simberg.



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Quebras



O homem que conhece a si e sabe onde navega não pode ser escravizado, ele não pode ser feito prisioneiro, nem por ideias, nem por amarras : afasta-as, segue seu caminho, criando outras possibilidades. E pronto. A miséria humana não está na falta de bens.  Mas nos que aceitam sem questionar e se tornam escravos robotizados. Alguns não querem ser perturbados, ainda que se encontrem na miséria. Permanecem na miséria, acostumaram-se com isso,  e qualquer um que não seja um miserável parece um estranho. Pensar, criar, criticar, mostrar as defesas frágeis, as rachaduras da fortaleza, esse é o que parecerá estranho. Incômodo. Da mesma forma que se criam idiotas que repetem um discurso e pensam que estão numa situação favorável, sem preocupações [“com tudo indo numa boa”] criam-se os miseráveis. Miséria de espírito. Miséria de condicionamentos. Esses idiotas também creem que se se eles forem “confundidos com isso e aquilo” isso “poderá atrapalhar sua bela trajetória” e por isso se mantém inermes. [Para esses, vale o manual best seller da idiotice: “não mexam no meu queijo...”]


Mas, diante da força corrosiva dessa miséria, felizmente, nasce a resistência :  o rebelde, o desajustado. É ele que, de fato, quebra as correntes do condicionamento repressivo e das opiniões estagnantes da sociedade.  O rebelde, o desajustado não luta com alguém ou contra qualquer coisa, ele apenas sente que sua natureza verdadeira é o desajuste e está determinado a viver de acordo com ela. Ele não aniquila, não esbarra na infâmia, mas é suficientemente corajoso para assumir responsabilidade por quem ele realmente é e pelas ideias que defende. Não importa o vento ou o cheiro de podre que venha do norte ou sul, ele afastará a podridão, a infâmia, a idiotice e seguirá. 


O Mestre


que me perdoe Celan...
                                 mas
a morte pegou-me
andante e solitária
                 [porque morri
                 morri quando enfim olhei você
                 olho no olho
                 e pelo espelho refletido
                 nada nunca mais
                 abarcaria apenas noites e estrelas e palavras
                 mas cada forma em cada forma
                 de nós, em infinitos replicados]
morria como estrelas
apagando-se
explodindo no éter
para ser
muito mais que apenas um
mas todos os nossos mundos possíveis.




Artifícios


                                                                     [Foto: Louise Bourgeois]


Quem é o poeta? Quem o artista? Ambos utilizam a potência do falso para instaurar o verdadeiro. Entre o verídico e o verdadeiro, se inscreve o grande enigma da criação. Reencenar, pesquisar, atuar, buscar, romper e transformar pura e simplesmente o que existe : este é o desafio do criador. Abro os olhos, risco de giz os artifícios muitos. Algo aparece nas entrelinhas, como mágica de fogo que do céu é como um deus, e outro encontra o percurso inverso, da palavra estanque, muda, rígida que permanece como pedra bruta. O objetivo: instaurar uma realidade densa e viva onde possa realmente existir e morrer num átimo. Existir é sempre a mesma dor, mas é nas relações entre material e artifício entre palavra e ato, entre imagem e espectro que nasce esse instante último, fugaz e paradoxalmente eterno da criação. Depois é a morte, a veracidade das imagens que flutuam no espaço, nunca mais pertencente ao criador.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Via Láctea

      Untitled, Felix Gonzalez Torres, 1989

um sonho urgente nos sonha
longos poemas nas tardes gris
um pesado esforço de areias deslizam na ampulheta
a via láctea, o vazio.

depois,
um breve silêncio
e o sussurro do deus na noite.


Símbolos

As exigências materiais devoram as mais verdadeiras manifestações da vida. E nosso olhar ocidental-capitalista devora toda e qualquer concepção integral ou harmônica do mundo. Estamos mesmo perdidos, ocupados que estamos em acumular, possuir, desejar, acumular, acumular.  Essa verdade simples, aterradora, imprime o materialismo em nós, como uma marca a fogo. Nossa sociedade está se tornando um equívoco, mascarada em modelos que não funcionam para todos, mas apenas para uma elite [a mim, a lucidez  torna tudo em torno mais tosco e desesperador], e acumulam-se erros, desastres e destruição. A grande maioria das pessoas sequer percebe isso: tudo parece-lhes normal. 

          Mas, irremediavelmente, a verdade é que a teia está tecida em trama tal que é difícil qualquer possibilidade de escape ou saída, e todas as pessoas acabam por colaborar com o absurdo, perpetuando-o. Penso nisso todos os dias e minha tendência é tentar negá-lo, mas quando estou no cotidiano, quando tenho que conviver com as pessoas, percebo que não é possível a negação total. O resultado dessa negação seria tornar-se uma Claudel, um Van Gogh. Ou ser um personagem de Kafka ao contrário: virar um macaco talvez pudesse ser a única forma de viver entre homens e não perpetuar sua loucura.

E por que penso nessas coisas, por que perco meu tempo juntando símbolos nessa tela iluminada e escrevo minhas impressões? Porque penso que as palavras e a arte é o que pode salvar as pessoas. A arte, como li em Tarkovski, é um símbolo do universo, e está ligada à verdade espiritual. O livro [Esculpir o Tempo] é uma das obras mais lindas que li. E fez-me mudar internamente. Para sempre. E ao sair à rua e sentir a vida e o rumo que essa vida toma, sinto-me arrebatada pelo sentimento que Tarkovski descreve. Sinto que estamos perdendo algo essencial [na ânsia por algo que não passa de afirmação e ego, ou dinheiro], estamos perdendo a noção do horrível e do belo [que Tarkovski diz estarem contidos, paradoxalmente, um no outro] e estamos transformando tudo no horrível, como uma devoração insana do belo. Estamos perdendo a capacidade de ouvir o eco da nossa própria voz, e deixamos de entender que o discurso deve ser mudado. E porque é preciso parar e tentar um movimento contrário, algo que retome o elo espiritual. Algo que reverta essa insânia de acumular, acumular, acumular, sem nos preocuparmos em preservar a beleza da criação.


O dia

[Foto: Van Gogh's Mulberry Tree.] 

O dia. A chuva breve, pela manhã, ar perfeito e eu saio para o trabalho. Não ouço os passarinhos: a árvore foi morta [por mortais cientes demais de suas escolhas]. Não há mais nada que eu deseje nesta manhã: ter alguma coisa já não importa. Mas não poderei esquecer o toque sobre a pele, nem os olhos – profundos olhos de água. Não sinto nenhuma dor. Não sinto impulsos de alegria súbita. Não sinto nada além do dia que escorre lentamente diante de mim. Mas toda a dor pesa, como se o mundo inteiro me comprimisse. Penso demais em tudo o que todas as pessoas parecem deixar de pensar. Descalço os sapatos e resolvo pisar o asfalto molhado. Não sei descrever a sensação, estéril demais para as nossas poesias do cotidiano. Perdoe-me, então. Hoje. É. Apenas. Mais. Um. Dia. E a chuva cessou.





domingo, 17 de novembro de 2013

[...]


Escuta como eu escuto: de meus lábios que tão louca harmonia se ondula, enfim? Chamo-te pelo nome, ó pitonisa. Meu coração dispara e ouço. Ouço. É um eco enfurecido, como uma árvore que sonhasse ainda depois de ter arrancadas suas folhas e seus ninhos pelo vento. Enquanto isso alguém sonha, sob um céu azulado e negro de mesmas estrelas e cadência de tormentos.  Nosso paraíso não tem torres incendiadas ou campos cobertos de musgo negro. Mas, veja: estão tantos seguindo a longa estrada que margeia o rio, e estão cegos! Cegos! Quem os terá tomado a luz assim tão cruelmente?

[2004.jan.17]




sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Contemplação



 
 
O mundo hoje [e o ciberespaço] é muito cruel. E o é em vão: é um exercício de violação da personalidade e da contemplação, sem nenhum fim determinado. Até no que se pode chamar de arte há esse exercício de crueldade absolutamente gratuito, que impõe um ritmo alucinado de informações que nascem e morrem instantaneamente. Tem dias que eu me sinto submersa, náufraga, outros, soterrada e é contra esse sentimento que devo lutar, se eu quiser realmente fazer alguma coisa com o que penso, sinto, desejo.  O que desejo é viver; quero mesmo reencontrar minha tranquilidade, minha capacidade de contemplar. Penso muito sobre as coisas que me interessam. As artes me interessam. A beleza me interessa. O pensamento me interessa. Saber o quanto a arte está corrompida de seu valor real faz-me buscar a sua linguagem verdadeira, ou pelo menos tentar entendê-la a partir dos velhos livros, de forma a participar, assimilar e integrar seus conceitos e sua evolução, compreendê-la, devorá-la, senti-la.

Li em algum lugar que a função do artista é – mais do que nunca – encontrar uma nova linguagem, que possa restabelecer a comunicação e vencer a alienação reinante. Em nossa sociedade, tão carente de riquezas intelectuais, é necessário encontrar elementos de compreensão [da própria civilização, em seu estágio atual] para mergulhar na realidade e repensá-la numa nova estética, elevando-a a uma posição essencial. Mas, para isso, é preciso antes mergulhar em si mesmo. E para mergulhar em si mesmo é preciso tempo. Contemplação. Hoje, mais do que nunca, é preciso tentar vencer o ritmo alucinado de informações, pois ele é nefasto.
 
É preciso tentar ver o interior das coisas e compreendê-lo: sair das restrições impostas pelo imediatismo. Se vivemos a cultura urbana, a cultura de nossos dias, em que tudo é descartável, é necessário repensar o cotidiano e tudo o mais em relação à cultura tradicional. É preciso se jogar na realidade e saber que cada ser humano irá sentir essa realidade a partir de uma escala de valores. É preciso buscar os elos, os elementos que restituam uma compreensão dessa realidade, mesmo com a velocidade das mudanças, e sem a ditadura artificial de que é preciso que tudo venha nesse ritmo absurdo. Eu desejo arte. Eu desejo beleza. Eu desejo aprender. E para isso eu preciso desacelerar. Arte é consciência, é contramovimento, é emoção, é vida. É sentimento e pensamento. E nada disso pode acontecer se passar voando. É preciso parar, ver e penetrar em sua essência.
 
[Mesmo a vida necessita de pausas. Para no fim, morrer.]


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Des Fischers Liebesglück

 


Dort blinket durch Weiden
Und winket ein Schimmer
Blaßstrahlig vom Zimmer
Der Holden mir zu.



...

 
 
para depois ferir a pele. Um sopro. Não toco sua cabeleira, dormes, mas minha respiração ressoa no quarto quase vazio. Não sei mais a cor dos meus olhos, tanto tempo faz que olhei o espelho. A areia fina caindo eternamente, grãos de sonhos perdidos para sempre, tão próximos e breves — você ressona, a cabeça pendente e a mão mais sublime suavemente adormecida. Posso sentir o sangue correndo nas veias azuis, o silêncio não é tão grande assim. Do fundo do meu oco, a música ressurge e não posso conter as lágrimas: é preciso estar mais perto da morte. A noite traz o cheiro doce de flores de maio, seu breve abandono não percebe — desperto de sonho atroz: a vida e a morte no movimento eterno.
 
 
 
Foto: @ Kyle Thompson
 

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Ainda sobre a Beleza



                                                   Bernini, detalhe. O êxtase de Santa Theresa.


Continuo a refletir sobre a forma como vivemos hoje. Sobre a Beleza que morre aos poucos. E sobre o fato de tudo transformar-se em algo comercializável. Lucrativo. Empreendedor. [Palavras feias]. Reflito sobre o que interessa e o que não interessa às pessoas hoje em dia. Ou seja, será que apenas revelar o que se pensa de algo ainda interessa a alguém? É excitante? Não, não é. E a maioria das pessoas vive num mundo fictício, diga-se virtual, em que as outras vidas parecem sempre mais interessantes e excitantes que a própria vida. Passa-se a viver essas outras vidas, esperar pelo que façam, pelo que representam, por seus desejos e realizações, esquecendo-se de viver a própria. Não é assim que funciona? Abre-se o jornal, a revista, liga-se a TV, pluga-se a uma tela, ao celular, ao twitter, ao facebook, e lá está estampada a outra vida: a vida fake, a vida que se quer mostrar, mas nem sempre é a própria vida, ou pior: a vida de atores, artistas, políticos, personalidades, famosos uns e nem tão famosos assim outros....

E tudo se mistura ao reality show que se tornou o cotidiano, permeado pelo fútil, pelo prazer imediato e por sexo, pelas desgraças, por escândalos e guerras, catástrofes e corrupção e muito pouco além disso. Nem se sabe onde começa e onde termina a fantasia, a realidade, a encenação, a ficção. E chegamos ao ponto de as pessoas gostarem de viver essa falsa vida. E tudo é permitido. Válido. Deixa-se de viver com as amigos para se viver nas telas. Deixa-se de fazer algo pelo outro, para publicar um post sobre fazer algo pelo outro.

Lembro-me das palavras do Guilherme Scalzilli*, do qual aproprio algumas ideias contidas em belo artigo que escreveu. “O pior efeito colateral da onipresença desse tudo válido é a passividade das pessoas”. Não podemos esquecer que estamos numa sociedade de consumo que radicalizou ao extremo sua atuação e o consumo desenfreado impregnou-se tanto em todos os meios existentes que tudo parece nos acenar como propaganda. Nesse tudo válido, a propaganda assume seu papel condescendente: tudo pode aquele que tudo crê na sociedade de consumo.

“... tudo é história, tudo é física, tudo é moda: o estatuto universal da atividade depende da predisposição corporativa do observador. Tal simplificação, de evidente teor totalitário, pressupõe condicionantes publicitárias nos ambientes mais íntimos, como se fôssemos irresistivelmente dominados por forças exógenas, talvez imperceptíveis e alheias à nossa vontade. Tudo é manipulação”. [*Scalzilli, Guilherme]

E a Arte não está num plano superior, sofre do mesmo mal: a manipulação do imaginário.

Diante dessa verdade, alguns ainda permanecem perplexos — como eu — e outros tentam decifrar toda confusão, tentando tirar algo proveitoso das mudanças. Mas, ao observarmos com certo distanciamento, parecemos todos personagens possuídos por uma esquizofrenia coletiva, uma loucura absurda e estranha, vivendo um mundo desarticulado, fragmentado, no qual se misturam real e ficção numa junção assombrosa e na qual as relações de consumo deixam de ser escolha entre alternativas possíveis, e passam a ser um processo de valores intrínsecos, e quem consome passa a ser apenas um alienado que consome sem critérios, apenas “embalado” pela benevolência capitalista. E não há nenhuma Beleza nisso. "No campo da comunicação e informação, as imagens [sejam verdadeiras ou fictícias] e as afirmações [sejam reais ou manipuladas] adentram o terreno do real, verdades e mentiras são transformadas em dados que se espalham rapidamente como um vírus, uma praga, um câncer cerebral."

Essa é uma experiência incomum, é certo. Mas não é Bela. É o horror sem fundamento. É a desarticulação de toda forma de narrativa e poesia, é a ordem abismal do imediatismo inócuo, sem precedentes na história humana. E, infelizmente, é o nosso momento. Se ainda esperamos encontrar a expressão do mundo como imaginação e impulso vital, transmutados em um poder e uma criação, devemos ser capazes de recusar essa ordem vigente, de rechaçá-la, negá-la para que possa surgir uma brecha, uma fissura por onde irrompa a essência, a verdade. E, quem sabe, a Beleza.


 
 

Green grass...

 
 
 
 

[...]


Porque todas as coisas podem começar com um sim.





Fauve

 
Alguns murmúrios se fazem ouvir daqui, vêm do apartamento ao lado. Palavras dissonantes professadas por quem se acha protegido entre quatro paredes. Paredes que divisam o universo de outros que também professam suas licenciosidades no íntimo do lar.
 
Às vezes é difícil ser vizinho, mesmo quando se é um vizinho quase fantasma: preserva-se uma humanidade à beira da estupidez, ecoando entre quatro paredes, e quando se é vizinho escuta-se o que não se quer escutar. Sou vizinha quase muda, surda e cega. Mesmo assim os murmúrios invadem meu quarto, as gavetas, os armários, como se procurando ouvidos. Tenho vontade de sair correndo pela rua. Mas não há grande diferença.
 
Meus dedos estão cansados da tela brilhante. Meus olhos ardem. Não há coisa melhor aqui, mas tenho chá e livros. As palavras de Vincent me vêm à mente: “é mais digno morrer em bom estado de espírito do que em um estado degradante”. Foi o que escreveu para Gauguin. Sua lucidez de espírito está nos pequenos fragmentos de suas cartas. Cartas para Theo, para sua irmã, para o médico. Para Gauguin.
 
Olho pela janela: meu vizinho está no andar de baixo, também à janela. Pergunto a ele [e minha voz ecoa parede abaixo até a janela dele] se sabe quem é Vincent Van Gogh. Nunca ouviu falar. É suficiente para eu voltar a ser a vizinha mudasurdacega. Considero os pensamentos que me invadem, considero minhas limitações, considero essa solidão estéril. E você não está por perto. [Me salvaria, enfim, desse desespero vazio e sem sentido que são os murmúrios penetrando pelas frestas.] “Onde está você agora?” 
 
Eis a noite. A cidade quase adormece, desertando-se em silêncio. Meu vizinho fechou ruidosamente a janela, e depois tudo voltou ao silêncio... Tento compreender esse sonho que me foge enquanto abstraio-me dos murmúrios, agora silentes. Repousam no espaço-tempo. Tenho a sensação de estar confinada. Fauve. O que desejo de você é muito pouco. Que venha apenas conversar. E.

 

Bartolomeu




Astro dos dias, astro das noites

de onde vens desenrolando seus ciclos abolidos

da abóbada do céu dos homens?,


                                                              pensou Bartolomeu, e continuou observando a ordem e a desordem.  Guardou no bolso esquerdo uma estrela menor, azulada, que parecia querer deixar de o ser, e mergulhou as mãos calosas na miríade de astros em redemoinho.
 
Bartolomeu gostava mesmo era das estrelas que se juntavam mágica e atonitamente, implodindo loucas, como querendo o amor, porque só o amor nos enlouquece de querer fundir-se em Um.
 
Era um dia estranho, naquele céu sem eclipses, e Bartolomeu pensou no paradoxo de um mundo finito. Abriu as mãos. Nenhuma estrela. E o crepúsculo avermelhava. Bartolomeu riu, seus poderes eram mais eficazes. As constelações lá estavam: envolvendo os sonhos dos homens prosaicamente fascinados, interrogando-se desde sempre, porque provaram do fruto da inconsciência. Bartolomeu desceu a montanha.
 
Era possível que a noite brilhasse mais, então.
 
 
[o.L., dez.2001]



 

VII


Não será tanto a noite como o sol que

nos ofusca – mar alheio –

o motivo porque aspiramos ao céu? 

Se o silêncio: enfim, desse imóvel azul-negro

é ainda amor e dor... quente e logo frio

– a verdade que se vela aos segredos, sopra.

A noite saturada se extingue na luz.

Donde vêm tais pensamentos?

Para onde voam?

a noite é mais aqui. Nada mudou;

claro sinal do silêncio que me atinge.
 

 
 
 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2013

... e.



                                                                Fauzia_by_planet0


se a noite cai silenciosa, da ponta dos meus dedos frios escuto o eco surdo de um sol distante, noite negra e densa, brilha o astro longe, num sopro de vento noturno. Porque pensar nos homens, em suas aventuras ignóbeis e mesquinhas, diante de plácidos esgares e prazeres fugidios, se posso reter entre as mãos a mágica perpétua de fazer nascer os mais brilhantes astros na noite eterna? Meu coração funde-se ao brônzeo estalar dos metais, da terra seca rompe o talo espesso, meus pés fogem por pisar tão doce chão. Desci da minha torre — que não é mais que o refúgio de minhas noites insones — e piso a terra quente que me acolhe. Para mirar o céu deixo de ser humana: não mais posso estar entre estes que desprezo, se não os posso compreender as misérias e desacertos, o vento que me deixará encontrar o rastro do perfume que me desperta: diante estou da noite densa, um sopro e dissipam-se as sombras. Estou pronta.
 
[o. L., jun.2007]
 

Campos amarillos





piedras se te parecem
... mis ojos encierram el monte
y duerme el movimiento:
yo te miro, pero no es puro.

tengo em el sangre el amor
de oro plata plomo hierro cobre azogue estaño...
y la furia inmóvil
 
apagan los vestígios en el gran bosque claro
y no estoy en el murmúrio
la roca es como um rio:
no sueña ni llora
y como yo habla a una voz
a una voz

por las ventanas el soñador
mira
el amarillo:
areia y mar
desierto y lunas que se estienden
y forjan haces de claridad.
 
 
[o.L., 31 mai 2009]
 
 
 
 

 

Sobre a Beleza



                                               Gian Lorenzo Bernini, escultura, O rapto de Prosérpina.

 
Durante os últimos 20 anos li mais sobre Arte e Literatura do que sobre qualquer outro assunto. Aprendi nos livros e em aulas, palestras e conversas que a Arte muda de tempos em tempos, resgatando ecos de outras épocas, nuances, ritmos. Mas sempre a Arte é discutida como linguagem, como forma de conhecimento e expressão do mundo, como marca e fisionomia de uma época, embora seja intemporal. Mas, em toda e qualquer definição ou tentativa de conceituação, as artes (todas elas, da pintura à dança, da literatura ao teatro, da fotografia ao cinema etc) são a imaginação e o impulso vital do homem transmutados em um poder e uma criação, e seu valor espiritual, estético ou material expressos na Beleza.
 

Beleza. Harmonia entre as partes. Ao pensar nisso, ao deparar-me com a Arte produzida hoje, corro o risco de interpretar mal toda descontinuidade ou paradoxos produzidos por artistas que, ao mesmo tempo, me fascinam e incomodam. Não é o caso citá-los ou buscar exemplos que ilustrem minha perplexidade. Cada um, a seu modo, também deve deparar-se com uma sensação semelhante ao ver um quadro, assistir um filme, ler um livro, ouvir uma música. O que interessa neste momento é outro foco: o da Beleza. O que a Beleza representa e representou durante décadas, séculos ou mesmo desde que o homem fez a primeira representação no fundo de uma caverna, numa pedra.


Sempre que estou diante da verdadeira Arte, não importando qual forma de expressão foi escolhida pelo artista, percebo que a Beleza transparece como uma atmosfera, como um traço que não pode ser definido nem transcrito em palavras, e essa é verdadeiramente sua essência. Que mesmo a desvirtuação dos padrões pode revelar a Beleza, como nos prova a arte grotesca de tantos mestres, marcadas por desarmonia entre as partes, e o efeito psíquico que exercem suas manchas, suas deformações ou imagens monstruosas (como Goya, como Brüegel, como Fellini, como Greenaway, como Kazuo Ono e tantos tantos) e ainda assim nos remetem à Beleza. Entretanto, durante todo esse tempo que estudei, observei, senti e encontrei momentos dessa essência, também percebi, paralelamente, que essa capacidade de expressar o Belo dá lugar ao mercantilismo, à exploração de ideias, à comercialização em série.


Nem mesmo os ditos intelectuais, que se esforçam em divulgar e espalhar conceitos e verdades estéticas, escrevem livros, artigos, tratados, nem estes percebem que a Arte continua a ser a essência do homem [pelo menos teoricamente], mas que ao contrário do passado, a imagem da arte que se produz e se divulga hoje é sempre para vender alguma coisa. Os defensores do marketing dirão que a Arte sempre foi vendável e vendida, e sou obrigada a concordar. Mas não quero correr o risco dessa má interpretação: não é disso que estou falando. O que tento abordar é o desaparecimento gradual da capacidade de expressar a essência (o Belo) numa sociedade imediatista e transformada em mercado livre, que é a nossa. Falo da insipidez, do vazio inessencial, da falta dessa atmosfera que transpareça o Belo, e é de todos e para todos... e talvez eu fale do que retrata o que hoje é a nossa sociedade. E então o discurso pode ser entendido como outro: talvez quem não perceba então sou eu — que a Arte não mais está vinculada à Beleza, como nossa realidade não o está.


Todo esse pensamento me foi despertado pelo fato de descobrir que todo o universo sempre foi narrativo e poético, mas que a atualidade cibertecnográfica [essa palavra existe?] não é nem narrativa nem poética. Quer queiramos ou não, nosso mundo mudou, e mudou para sempre: de um universo conceitual, vívido, belo e repleto de poesia transmutou-se numa realidade fragmentada, fragmentária, instantânea, imediatista, fake, insípida e grotesca. E, para que não me entendam mal, repleta de uma insipidez e de um grotesco sem Beleza.


Dessas inquietações, contudo, há possibilidade de se visualizar um lado bom e um ruim? Talvez. Há sempre os resistentes, os que transmutam a lama e a podridão para fazer sobre-viver uma utopia. Esses existiram, existem e existirão [já disse o poeta]. Não quero parecer aterradoramente reacionária, ou deixar entender que abomino toda forma de aparato tecnológico-virtual. Não é nada disso. Mas começo a compreender minha necessidade de preservar, de agarrar-me à narrativa e à poesia que faz parte de um mundo que começa a se distanciar, a se dissolver. Apenas essa essência e essa vitalidade podem me fazer entender quem sou e quem me torno à medida que o tempo passa e a realidade transmuta. E para entender quem você é e o que pode fazer é preciso estar lúcido. Entretanto, não vivemos tempos de lucidez, vivemos a loucura exacerbada, a falta de sentido advinda de  “sentidos demasiados” bombardeados 24 horas por dia em nossas mentes: essa droga poderosa, destruidora e onipresente. As pessoas estão todas “anestesiadas” como se estivessem “loucas demais” por uma droga invisível, uma superdose, e acreditam que estão “limpas e lúcidas”, que são donas de si e que têm todo o poder da liberdade, da informação, da imaginação e da criação. Mas a realidade é outra.

 
Uma realidade fragmentada, sem personalidade, permeada por uma rede invisível em que coabitam e convivem verdades e mentiras num mesmo plano: essa rede gigantesca de informações entrelaçadas e implausíveis que se tornou o mundo a nossa volta só pode resultar em uma arte sem Beleza, que nos deixa à deriva, insensíveis, apáticos, inertes. Tão inertes quando aptos a aprová-la, consumi-la, perpetuá-la sem sequer uma reflexão. Numa guerra de bombardeios constantes não há lugar para reflexão. Ou se está vivo, ou se está morto [ : como nos filmes mais aterradores ou na guerra mais aterradora].  E as pessoas preferem estar “vivas” [leia-se pessoas = participantes do ciberespaço ou da sociedade de consumo], mesmo que para isso percam toda lucidez, vitalidade e liberdade: ou seja, na verdade, estão mortas, de forma acrítica e passiva.


Uma vez li que o melhor tipo de consciência  é a que cerca você. Que te “empareda” e faz perceber o limite, o ápice. E então você se torna mais forte e capaz de criar. Nossa realidade não cerca. Ela permeia, penetra nossas mentes, corrói nossa vontade, destrói nossa imaginação, preenchendo com excessos todo buraco, todo vazio. Não há lugar para limites, para consciência. Há excessos. Excessos. E mais excessos.

 
E por que escrevo essas coisas? Porque sempre vivi num mundo em que existia Beleza. Era possível enxergar uma atmosfera no ar, havia uma vontade de melhorar o mundo. Havia Beleza e não apenas nas Artes, mas no cotidiano, nos ideais — até na feiura aparente havia Beleza. Para todos. Por isso escrevo. E talvez porque levo tudo muito a sério. E não me creiam  leviana: acredito realmente nisso. Mas tenho sido frustrada em minhas tentativas de revelar o que quer que seja. A verdade (e desvantagem) é que não sou alguém respeitável, para que acreditem em qualquer coisa que eu diga.  E a vantagem (ironicamente ao avesso do senso comum) é que posso rir disso. E continuar tentando.

 
Mas, voltando ao foco, vislumbro um futuro estranho, onde não mais exista beleza, não mais existam ideias inteligentes. Onde tudo será asséptico, virtual, previsível e esteticamente padronizado. Onde reinarão apenas ideias vendáveis. Posso vender minha palavra? Posso vender meu rabisco de grafite? Posso vender minha ideia de mundo? Meu blog? Ele é vendável?  [Não. Ou espero que não.  Mas espero que ele incomode as pessoas ao ponto de fazê-las sair do lugar.]

 
Por pensar tanto e tanto, temo esse futuro, porque ele me parece estéril.  Porque a Harmonia e a Beleza talvez não possam resistir a essa fórmula pelos séculos que virão. Será?




 

Lady....


Open your eyes



Acredite-me, mas sobretudo não acredite em mim. Beije-me, mas sobretudo não me beije. Devaste-me, mas sobretudo não me devaste.  Ata-me, mas sobretudo não me ate.  Aceita-me, mas sobretudo não me aceite. Traduza-me, mas sobretudo não me traduza.  Mate-me, mas sobretudo não me mate. Porque as ervas crescem nos cantos abandonados do ser, porque a água crepita sobre os pavimentos encerados, porque a forma é o enigma selvagem diante de ti, porque as palavras decapitadas sangram na página em branco. Ouça-me, mas sobretudo não me ouça. Porque as serpentes aquáticas movem-se nos escombros. Porque o outro é anterior ao eu. Open your eyes.



XXI




O corpo
na imutável ausência do ser
as chagas e os risos
e o breve rapto da última palavra.

Ver sob uma luz obscura
a pálpebra semicerrada
a cobiça a roer-se
e, no entanto, dorme.

Quem é que vem, senão o duplo?
Deste sonho do qual se levanta
permanece na memória apenas
o nome inscrito e uma máscara mortuária.


[o.L & m.B.]