quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Fauve

 
Alguns murmúrios se fazem ouvir daqui, vêm do apartamento ao lado. Palavras dissonantes professadas por quem se acha protegido entre quatro paredes. Paredes que divisam o universo de outros que também professam suas licenciosidades no íntimo do lar.
 
Às vezes é difícil ser vizinho, mesmo quando se é um vizinho quase fantasma: preserva-se uma humanidade à beira da estupidez, ecoando entre quatro paredes, e quando se é vizinho escuta-se o que não se quer escutar. Sou vizinha quase muda, surda e cega. Mesmo assim os murmúrios invadem meu quarto, as gavetas, os armários, como se procurando ouvidos. Tenho vontade de sair correndo pela rua. Mas não há grande diferença.
 
Meus dedos estão cansados da tela brilhante. Meus olhos ardem. Não há coisa melhor aqui, mas tenho chá e livros. As palavras de Vincent me vêm à mente: “é mais digno morrer em bom estado de espírito do que em um estado degradante”. Foi o que escreveu para Gauguin. Sua lucidez de espírito está nos pequenos fragmentos de suas cartas. Cartas para Theo, para sua irmã, para o médico. Para Gauguin.
 
Olho pela janela: meu vizinho está no andar de baixo, também à janela. Pergunto a ele [e minha voz ecoa parede abaixo até a janela dele] se sabe quem é Vincent Van Gogh. Nunca ouviu falar. É suficiente para eu voltar a ser a vizinha mudasurdacega. Considero os pensamentos que me invadem, considero minhas limitações, considero essa solidão estéril. E você não está por perto. [Me salvaria, enfim, desse desespero vazio e sem sentido que são os murmúrios penetrando pelas frestas.] “Onde está você agora?” 
 
Eis a noite. A cidade quase adormece, desertando-se em silêncio. Meu vizinho fechou ruidosamente a janela, e depois tudo voltou ao silêncio... Tento compreender esse sonho que me foge enquanto abstraio-me dos murmúrios, agora silentes. Repousam no espaço-tempo. Tenho a sensação de estar confinada. Fauve. O que desejo de você é muito pouco. Que venha apenas conversar. E.

 

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