segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Desmoronamento

Sempre ouço meus amigos falarem desse ou daquele filme “bárbaro”, dessa exposição “chocante”, “incrível”, ou daquela produção teatral ou musical “fascinante”.  Nem vou destacar esses adjetivos, que seria assunto para outra oportunidade, mas sempre fico estupefacta, pois percebo que as pessoas [que se acham parte da inteligentsia da modernidade cyberinformatizada] repetem incessantemente o que leem nas revistas especializadas em arte, nos jornais ditos “informativos” ou mesmo repetem coisas que ouviram algum  intelectual ou artista apontar como  o melhor, o mais in a ser apreciado – ou consumido.

Mesmo nas revistas nas quais antes eu encontrava bons artigos, a crítica de arte parece transformar-se em caricatura patética: parece haver necessidade de absorver a imensa e poderosa indústria cultural que sorrateiramente vai substituindo ícones e descartando os “melhores do verão passado” pelos “melhores desse verão” em detrimento da essência, da qualidade ou da consistência do trabalho. Assim, muitas vezes nos deparamos com filmes, peças e exposições lastimáveis que foram divulgados como “o máximo” e que arrastam milhares de espectadores por suas pretensas “qualidades” artísticas – e que “misteriosamente” desaparecem tão rápido quanto suas aparições na mídia.

Um desses casos é o filmeco “Gravidade”, o que não posso sequer chamar de cinema. Se algum mérito há nesta produção são apenas as imagens da Terra,  filmadas do espaço, e que são realmente belíssimas. No mais, o filme não tem roteiro, não se sustenta, é cheio de falhas perceptíveis, é uma sucessão ridícula de catástrofes [para mim não passa de um filme catástrofe, daqueles muito em moda nos idos anos 1970, como Inferno na Torre, Aeroporto, Poseidon, Terremoto etc, a diferença são as poucas locações e o preço baixo da produção, finalizada digitalmente], os diálogos são infames, a fantasia para um final catártico é enfadante e inverossímil, enfim, uma produção de péssima qualidade e que foi aclamada como “filme da década”. Francamente, nem dá para se estender na absurdidade dessa afirmativa.

Quando vejo meus amigos inteligentes, sensíveis entrando na onda do marketing desse lixo cultural eu sinto tristeza. Tristeza, pois me parece que nos aproximamos de um período  obscuro e de desmoronamento do pensamento, da reflexão.  Parece-me que as pessoas vão absorvendo o que foi escolhido para ser o cult da vez, sem nenhum questionamento, de maneira patética e estúpida. Lembro-me então que assisti a uma palestra há uns 10 anos  –  embora eu não me lembre quem era o palestrante, faz tempo, foi um professor da USP, se não me engano num dos ciclos Mutações – e ele dizia que coisas desse tipo só provam o desmoronamento da nossa civilização. Ele apontava uma opinião do Roberto Rosselini, a qual busquei  e resumo a seguir:

“a partir do momento em que se dá o desmoronamento de uma civilização dá-se paralelamente o desmoronamento da arte, o desmoronamento da linguagem, o desmoronamento do pensamento. [...] Uma civilização traz, como resultado, a sua arte, traduzida em monumentos, obras de grandes poetas, ilustres artistas e pensadores em diversas áreas. Mas quando a civilização deixa de existir, ou quando está em crise, a arte morre ao mesmo tempo, ou mesmo antes”.

Analiso essas reflexões e penso na nossa sociedade pautada numa aceleração imposta e numa apreciação fictícia de novas e glorificadas tecnologias [que em geral são substituídas – antes mesmo de serem compreendidas – por outras ainda mais novas, ad infinitum] como se fosse o máximo da “evolução” humana.  E então penso que a nossa é uma época na qual presenciamos exatamente o contrário do que disse Rosselini:  vemos o desmoronamento do pensamento, da linguagem e da arte sem que a civilização desapareça em primeiro lugar.

Não podemos negar que, para existir, uma civilização precisa da arte, pois a arte é o que move a verdadeira essência do ser humano. O homem não vive sem arte. E a arte, para existir, necessita de ideias muito claras, além de trabalho, pesquisa, aprofundamento e emoção. Atualmente, quando olhamos bem de perto o que se chama de arte, percebemos que não há nada que a caracterize e a faça permanente, durável: o fenômeno que faz parte da nossa civilização, do nosso tempo – que é o fenômeno da técnica e da aceleração técnica – destitui, despreza e mata a emoção e a imersão interior necessárias à criação. Muitos  artistas hoje não fecundam, não criam, não perpetuam, não provocam emoções, mas geram e trabalham para o resultado imediato de sua suposta arte: querem produzir em grande escala e vender a sua “arte”, desejam vender sua imagem e a imagem do seu trabalho, ou seja, querem estar dentro do mercado com sua “arte”, da mesma maneira que se vendem roteiros turísticos fantásticos, produtos de luxo  para privilegiados, ou qualquer outro produto.

O que define é o merchandising, numa corrida insana em que os artistas mais espertos dessa temporada dão a “rasteira” nos  artistas espertos da temporada passada.  O que é um absurdo, como se não houvesse espaço para a arte de todos, uns “tomam” o lugar dos outros, numa disputa absolutamente gratuita e insana, em que o menos válido é o trabalho artístico, que pode ser qualquer porcaria, desde que leve um rótulo de “genial”, “fantástico”, “estupendo” dado por algum expert ou pela mídia institucionalizada, previamente paga para tal, e que garante o resultado:  a mídia e a divulgação garantem o sucesso total de muito lixo.


Às vezes penso que estamos apenas perdidos num limbo tecnicista, mercadológico e absurdo: presenciamos o desmoronamento de tudo o que é vital nas artes em prol de uma modernização acelerada e sem rosto, estéril, e que “seleciona” os artistas pelo seu poder de influência e penetração, ou pela grana envolvida nos projetos. É óbvio que não podemos comparar a época atual com o século passado ou a antiguidade. E também não estou dizendo que o produto artístico não possa ser valorado e vendido, mas que o mercado se tornou a meta, independente de qualquer outra coisa. Também não podemos esquecer que há artistas verdadeiros que sobrevivem soturnamente nos subterrâneos paralelos ao mercado [sim, felizmente eles existem e fazem uma arte genuína, verdadeira],  mas é evidente que a nossa civilização, o pensamento e o homem estão em perfeita decadência, pois uma arte que dependa exclusivamente de um bom merchandising [ou seja, muito dinheiro e influência:  a simbiose perfeita] e que desaparece em seguida, sem deixar rastros, só pode ser a arte da decadência, do desmoronamento, da leviandade. 

                                                   The Wounded Angel, Hugo Simberg.



segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Quebras



O homem que conhece a si e sabe onde navega não pode ser escravizado, ele não pode ser feito prisioneiro, nem por ideias, nem por amarras : afasta-as, segue seu caminho, criando outras possibilidades. E pronto. A miséria humana não está na falta de bens.  Mas nos que aceitam sem questionar e se tornam escravos robotizados. Alguns não querem ser perturbados, ainda que se encontrem na miséria. Permanecem na miséria, acostumaram-se com isso,  e qualquer um que não seja um miserável parece um estranho. Pensar, criar, criticar, mostrar as defesas frágeis, as rachaduras da fortaleza, esse é o que parecerá estranho. Incômodo. Da mesma forma que se criam idiotas que repetem um discurso e pensam que estão numa situação favorável, sem preocupações [“com tudo indo numa boa”] criam-se os miseráveis. Miséria de espírito. Miséria de condicionamentos. Esses idiotas também creem que se se eles forem “confundidos com isso e aquilo” isso “poderá atrapalhar sua bela trajetória” e por isso se mantém inermes. [Para esses, vale o manual best seller da idiotice: “não mexam no meu queijo...”]


Mas, diante da força corrosiva dessa miséria, felizmente, nasce a resistência :  o rebelde, o desajustado. É ele que, de fato, quebra as correntes do condicionamento repressivo e das opiniões estagnantes da sociedade.  O rebelde, o desajustado não luta com alguém ou contra qualquer coisa, ele apenas sente que sua natureza verdadeira é o desajuste e está determinado a viver de acordo com ela. Ele não aniquila, não esbarra na infâmia, mas é suficientemente corajoso para assumir responsabilidade por quem ele realmente é e pelas ideias que defende. Não importa o vento ou o cheiro de podre que venha do norte ou sul, ele afastará a podridão, a infâmia, a idiotice e seguirá. 


O Mestre


que me perdoe Celan...
                                 mas
a morte pegou-me
andante e solitária
                 [porque morri
                 morri quando enfim olhei você
                 olho no olho
                 e pelo espelho refletido
                 nada nunca mais
                 abarcaria apenas noites e estrelas e palavras
                 mas cada forma em cada forma
                 de nós, em infinitos replicados]
morria como estrelas
apagando-se
explodindo no éter
para ser
muito mais que apenas um
mas todos os nossos mundos possíveis.




Artifícios


                                                                     [Foto: Louise Bourgeois]


Quem é o poeta? Quem o artista? Ambos utilizam a potência do falso para instaurar o verdadeiro. Entre o verídico e o verdadeiro, se inscreve o grande enigma da criação. Reencenar, pesquisar, atuar, buscar, romper e transformar pura e simplesmente o que existe : este é o desafio do criador. Abro os olhos, risco de giz os artifícios muitos. Algo aparece nas entrelinhas, como mágica de fogo que do céu é como um deus, e outro encontra o percurso inverso, da palavra estanque, muda, rígida que permanece como pedra bruta. O objetivo: instaurar uma realidade densa e viva onde possa realmente existir e morrer num átimo. Existir é sempre a mesma dor, mas é nas relações entre material e artifício entre palavra e ato, entre imagem e espectro que nasce esse instante último, fugaz e paradoxalmente eterno da criação. Depois é a morte, a veracidade das imagens que flutuam no espaço, nunca mais pertencente ao criador.