Sempre ouço meus amigos falarem
desse ou daquele filme “bárbaro”, dessa exposição “chocante”, “incrível”, ou
daquela produção teatral ou musical “fascinante”. Nem vou destacar esses adjetivos, que seria
assunto para outra oportunidade, mas sempre fico estupefacta, pois percebo que as
pessoas [que se acham parte da inteligentsia
da modernidade cyberinformatizada]
repetem incessantemente o que leem nas revistas especializadas em arte, nos
jornais ditos “informativos” ou mesmo repetem coisas que ouviram algum intelectual ou artista apontar como o melhor, o mais in a ser apreciado – ou consumido.
Mesmo nas revistas nas quais antes
eu encontrava bons artigos, a crítica de arte parece transformar-se em
caricatura patética: parece haver necessidade de absorver a imensa e poderosa
indústria cultural que sorrateiramente vai substituindo ícones e descartando os
“melhores do verão passado” pelos “melhores desse verão” em detrimento da
essência, da qualidade ou da consistência do trabalho. Assim, muitas vezes nos
deparamos com filmes, peças e exposições lastimáveis que foram divulgados como
“o máximo” e que arrastam milhares de espectadores por suas pretensas “qualidades”
artísticas – e que “misteriosamente” desaparecem tão rápido quanto suas
aparições na mídia.
Um desses casos é o filmeco “Gravidade”,
o que não posso sequer chamar de cinema. Se algum mérito há nesta produção são
apenas as imagens da Terra, filmadas do
espaço, e que são realmente belíssimas. No mais, o filme não tem roteiro, não
se sustenta, é cheio de falhas perceptíveis, é uma sucessão ridícula de
catástrofes [para mim não passa de um filme catástrofe, daqueles muito em moda
nos idos anos 1970, como Inferno na
Torre, Aeroporto, Poseidon, Terremoto etc, a diferença são as poucas
locações e o preço baixo da produção, finalizada digitalmente], os diálogos são
infames, a fantasia para um final catártico é enfadante e inverossímil, enfim, uma
produção de péssima qualidade e que foi aclamada como “filme da década”.
Francamente, nem dá para se estender na absurdidade dessa afirmativa.
Quando vejo meus amigos
inteligentes, sensíveis entrando na onda do marketing desse lixo cultural eu
sinto tristeza. Tristeza, pois me parece que nos aproximamos de um período obscuro e de desmoronamento do pensamento, da
reflexão. Parece-me que as pessoas vão
absorvendo o que foi escolhido para ser o
cult da vez, sem nenhum questionamento, de maneira patética e estúpida. Lembro-me
então que assisti a uma palestra há uns 10 anos
– embora eu não me lembre quem era o palestrante, faz tempo, foi um professor
da USP, se não me engano num dos ciclos Mutações
– e ele dizia que coisas desse tipo só provam o desmoronamento da nossa
civilização. Ele apontava uma opinião do Roberto Rosselini, a qual busquei e resumo a seguir:
“a partir do momento em que se dá o desmoronamento de uma
civilização dá-se paralelamente o desmoronamento da arte, o desmoronamento da
linguagem, o desmoronamento do pensamento. [...] Uma civilização traz, como
resultado, a sua arte, traduzida em monumentos, obras de grandes poetas,
ilustres artistas e pensadores em diversas áreas. Mas quando a civilização
deixa de existir, ou quando está em crise, a arte morre ao mesmo tempo, ou
mesmo antes”.
Analiso essas reflexões e penso na
nossa sociedade pautada numa aceleração imposta e numa apreciação fictícia de
novas e glorificadas tecnologias [que em geral são substituídas – antes mesmo
de serem compreendidas – por outras ainda mais novas, ad infinitum] como se fosse o máximo da “evolução” humana. E então penso que a nossa é uma época na qual
presenciamos exatamente o contrário do que disse Rosselini: vemos o desmoronamento do pensamento, da linguagem
e da arte sem que a civilização desapareça em primeiro lugar.
Não podemos negar que, para
existir, uma civilização precisa da arte, pois a arte é o que move a verdadeira
essência do ser humano. O homem não vive sem arte. E a arte, para existir,
necessita de ideias muito claras, além de trabalho, pesquisa, aprofundamento e
emoção. Atualmente, quando olhamos bem de perto o que se chama de arte, percebemos
que não há nada que a caracterize e a faça permanente, durável: o fenômeno que
faz parte da nossa civilização, do nosso tempo – que é o fenômeno da técnica e
da aceleração técnica – destitui, despreza e mata a emoção e a imersão interior
necessárias à criação. Muitos artistas
hoje não fecundam, não criam, não perpetuam, não provocam emoções, mas geram e
trabalham para o resultado imediato de sua suposta arte: querem produzir em
grande escala e vender a sua “arte”,
desejam vender sua imagem e a imagem do seu trabalho, ou seja, querem estar dentro do mercado com sua “arte”, da mesma maneira que se vendem
roteiros turísticos fantásticos, produtos de luxo para privilegiados, ou qualquer outro produto.
O que define é o merchandising, numa corrida insana em
que os artistas mais espertos dessa temporada dão a “rasteira” nos artistas espertos da temporada passada. O que é um absurdo, como se não houvesse
espaço para a arte de todos, uns “tomam” o lugar dos outros, numa disputa
absolutamente gratuita e insana, em que o menos válido é o trabalho artístico,
que pode ser qualquer porcaria, desde que leve um rótulo de “genial”, “fantástico”,
“estupendo” dado por algum expert ou
pela mídia institucionalizada, previamente paga para tal, e que garante o
resultado: a mídia e a divulgação
garantem o sucesso total de muito lixo.
Às vezes penso que estamos apenas perdidos
num limbo tecnicista, mercadológico e absurdo: presenciamos o desmoronamento de
tudo o que é vital nas artes em prol de uma modernização acelerada e sem rosto,
estéril, e que “seleciona” os artistas pelo seu poder de influência e
penetração, ou pela grana envolvida nos projetos. É óbvio que não podemos comparar
a época atual com o século passado ou a antiguidade. E também não estou dizendo
que o produto artístico não possa ser valorado e vendido, mas que o mercado se
tornou a meta, independente de qualquer outra coisa. Também não podemos
esquecer que há artistas verdadeiros que sobrevivem soturnamente nos subterrâneos
paralelos ao mercado [sim, felizmente eles existem e fazem uma arte genuína,
verdadeira], mas é evidente que a nossa
civilização, o pensamento e o homem estão em perfeita decadência, pois uma arte
que dependa exclusivamente de um bom merchandising
[ou seja, muito dinheiro e influência:
a simbiose perfeita] e que desaparece em
seguida, sem deixar rastros, só pode ser a arte da decadência, do
desmoronamento, da leviandade.
The Wounded Angel, Hugo Simberg.