terça-feira, 29 de julho de 2014

Soturno

Foto: Ralph Eugene Meatyard, Boy with White Mask, 1962



Olho todos esses espaços,
essa luz, esse céu e não sei mais.
Minha melancolia é sempre.
E uma dor que não me abandona
nem quando tenho esses ataques lúcidos.
Será que é só uma ilusão?
Devemos esperar mais?

Mito estranho e impensável numa capital em pleno século XXI.
Na sala de jantar os convivas gritam por um deus,
E aguardam o sacrifício em silêncio.
Alguém remove restos de comida da mesa longa e enfeitada,
e continua o ritual.
E a cidade lá fora continua impassível,
e a noite é ainda densa
e um vulto caminha soturnamente, na sombra.
Abro mais os olhos : esqueço os outros,
é você que me interessa.
Ouça.



segunda-feira, 28 de julho de 2014

Nos Penhascos de Mármore


Nos Penhascos de Mármore é um dos mais belos e impressionantes textos que já li. O livro, do alemão Ernst Jünger, foi originalmente lançado em 1939, às vésperas da guerra, e tornou-se um clássico moderno. Contraditoriamente foi considerado antinazista pelos ingleses e profundamente nazista pelos alemães, mas deixo essas meditações aos leitores.

Em breve posfácio, lemos que Jünger lutou com rara bravura na Primeira Guerra Mundial, cuja experiência é descrita magnificamente em Tempestades de Aço, considerado por André Gide como o mais belo livro de guerra já escrito. Sabemos também que Ernst Jünger foi um altivo soldado antes de se tornar escritor, e em seus textos percebe-se a narrativa da vida de lutas, o sacrifício, a dor e o sofrimento em combate, além dos textos em que demonstra sua simpatia pelo nacionalismo. 

Jünger acreditava que a confrontação bélica e um exército forte configuravam a necessidade de mobilização nacionalista dos alemães, pela derrubada da democracia e a construção de uma nova Alemanha, e engajou-se de corpo e alma nessa luta.  Entretanto, alguns anos depois, ao perceber as mudanças de rumo político do nacional-socialismo, Jünger abandonaria os planos militares e se afastaria para tornar-se um escritor. Então passou a viver em pequenas cidades alemãs e dedicou-se a uma vida serena e voltada aos valores humanistas. Em sua biografia consta que sua literatura era muito admirada por Hitler, o qual convidou-o mais de uma vez a integrar um grupo de candidatos ao Parlamento.  Jünger recusou as propostas e, por suas ideias, o general Goebbels quis persegui-lo, mas Hitler, por respeito e admiração ao escritor, ordenou deixá-lo em paz.

Jünger fez uma viagem ao Brasil em 1936, na qual ficara encantado com a exuberância da floresta amazônica, a fauna e a flora brasileiras, as formações rochosas do Rio de Janeiro e as serpentes que observou no Instituto Butantã em São Paulo. Segundo estudiosos, Jünger incorporou esses elementos à magnifica paisagem descrita em Nos Penhascos de Mármore.

Narrado em prosa de rara beleza e estilo, Nos Penhascos de Mármore é uma alegoria da Europa sob a sombra da Segunda Grande Guerra, e revela-nos de maneira sutil e simbólica tanto a realidade [com fina observação da natureza] quanto a devastação e a brutalidade do totalitarismo. É um livro belo em muitos aspectos, e conta-nos de maneira límpida e poética a vida comum e os acontecimentos em um povoado, a partir da observação da natureza e do comportamento humano, ressaltando o valor da ciência e da beleza, e o desenrolar da luta contra o poder destrutivo. É daqueles livros tão bem escritos que as imagens ficam coladas à memória de maneira irreversível, tanto por sua beleza imagética quanto pela verdade subjacente às imagens evocadas. O livro é ao mesmo tempo metáfora e reflexão: pura literatura que também mostra o mundo como o conhecemos. Ou desconhecemos.

Não falarei muito sobre a narrativa, para não adiantar as surpresas, mas Nos Penhascos de Mármore conta-nos a vida de dois irmãos, os quais já combateram em uma guerra, e optaram por viver no alto de um despenhadeiro, de onde, protegidos por serpentes nativas, observam a geografia imaginária da bela cidade de Marina, a qual se estende no vale, embaixo, e mais além as florestas escuras da Mauritânia e as pastagens da Campanha. Os dois são eruditos e amantes da beleza e dos estudos, e passam os dias a recolher espécimes raros de flores e plantas, catalogando-os em sua grande biblioteca. Este idílio, porém, é alterado brutalmente pela violência crescente e aterradora que ameaça sua pacífica realidade, com a aproximação do poder e domínio de um ditador sanguinário. 

E eu paro por aqui, para não estragar a beleza da descoberta. Considero-o não apenas uma sugestão de leitura, mas imprescindível. A Beleza compensa, e cada um que se entregar a este magnífico livro o saberá.



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Adão no Paraíso

Adão e Eva, Albrecht Dürer, óleo sobre madeira, 1507.


O pequeno e belíssimo livro com 3 ensaios de José Ortega y Gasset "Adão no Paraíso e outros ensaios de Estética" traz reflexões importantes sobre Estética, Literatura, Pintura e Arte.  Nestes belos textos, Ortega y Gasset aborda questões relacionadas ao gosto e à tomada de posição em relação à arte, em relação aos estudos de estética e às emoções suscitadas diante da obra. O autor, em linguagem fluida, direta, desconstrói alguns dogmas da tradição crítica, com simplicidade e maestria. 

No primeiro ensaio, Adão no Paraíso, Ortega y Gasset aponta-nos que “há tantas realidades quanto pontos de vista” e, portanto, não se pode crer numa realidade imutável e única com a qual se pode comparar ou definir os conteúdos das obras de arte. Ainda, segundo ele, “toda cultura é artifício”, resultado de uma cadeia de ideias, práticas, pontos de vista e tomadas de posição.  
         
Ortega y Gasset diz-nos que os limites da teoria, a qual reduz a arte a conceitos, exclui o pensamento acerca da origem das emoções diante das obras. A partir da sua experiência e do seu gosto, como espanhol e pensador, passa a compor reflexões que formam a base da sua investigação estética, sem, no entanto, se deixar cair nas armadilhas das verdades absolutas ou irrefletidas. Assim, o filósofo valoriza o sentimento e a emoção diante da obra e, para ilustrá-lo poeticamente, constrói uma interessante metáfora: "Adão foi o primeiro ser que, vivendo, sentiu a si mesmo viver. Para Adão a vida existe como um problema". Assim, para Ortega y Gasset não existe arte sem reflexão, e Adão torna-se o primeiro homem a prová-lo e se diferenciar dos animais. O homem carrega, pois, dentro de si, um problema heroico, trágico, e a arte é o que permitirá resolver esse problema.

Segundo o autor, a estética é uma “operação bastante melancólica” e pretende “encaixar nos quadradinhos dos conceitos a pletora inesgotável da substância artística”. Por outro lado, “não há forma de aprisionar em um conceito a emoção do belo”, já que diante da obra de arte “a observação estética não satisfaça nunca”. “A arte é o reino do sentimento, e dentro da constituição desse reino, o pensamento só pode frequentar o plebeu e o vulgar, só pode representar a vulgaridade.”

Ortega y Gasset analisa ainda outros aspectos: para as ciências, as coisas são casos particulares de leis gerais. "Da tragédia da ciência nasce a arte. Quando os métodos científicos nos abandonam, começam os métodos artísticos". As artes são, portanto, parte do mistério. E o ensaísta vai defini-las pelo que há de particular e irredutível em cada uma: “uma arte que pode se expressar de outra forma não é arte; o significado de um poema traduzido em prosa já não é o poema”. E, em certo ponto, afirma: “mas, para quem tem consciência do que significa uma orientação exata nesses assuntos, a estética vale tanto como a obra de arte”.

Para não esgotar as surpresas desse pequeno e belíssimo livro, termino o post por aqui [sem mencionar os outros dois ensaios]. Voltarei a ele, para reconstruí-lo de outra maneira ou para falar dos olhares e da beleza que brota do olhar dos artistas.