sábado, 24 de maio de 2014

H.


Felice Casorati, Dreaming Of Pomegranates, 1912.




Pássaros nos meus olhos
o noite vem dizer que nada sei

o silêncio não pode aplacar a dor
a dor não pode esquecer a ausência
a ausência não pode fazer mover o mundo

porque nos roubam assim o bem?

as horas estanques
os dedos frios
as flores mudas

imagens dizem que sou louca
mas hoje eu sou apenas mais sozinha.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A Ironia

Foto: Connie Palmen


Volto aos Cursos de Estética de Hegel.

Neste belo texto, Hegel diz-nos que a ironia encontrou seu fundamento na filosofia de Fichte. Estabelece o eu total e abstrato como princípio absoluto do saber, da razão, do conhecimento. Todo o conteúdo que deve valer para o eu só é estabelecido e reconhecido pelo eu. O que é só pode ser através de mim e, dessa maneira, pode ser aniquilado por mim.

Mas se as coisas só podem ser conhecidas e produzidas pelo eu, nada pode então ser considerado em si e para si.  O em si e para si é apenas uma aparência, não sendo verdadeiro. Hegel percebe uma falta de seriedade no agir do eu absoluto fichteano, pois a validade de tudo só se encontra no eu. Nisso, o eu pode criar e destruir indefinidamente, sem ter compromisso com qualquer seriedade. E os outros sujeitos, que não têm a capacidade de apreender a altura do ponto de vista do eu, são limitados, pobres.

Segundo Hegel, seria esse o significado da ironia divina: um eu que se concentra em si mesmo e vive para o seu próprio gozo, se relacionando ironicamente com o em si e para si universal, que só ele, o eu, determina. A partir disso, temos a nulidade de tudo o que é objetivo, exceto a própria subjetividade do eu, a qual, por isso, torna-se oca e vaidosa. Em contrapartida, há a insatisfação do sujeito, que precisa de algo fixo, substancial, o qual não pode conceber, não conseguindo, pois, se libertar da solidão e retraimento em si mesmo. Há a nulidade do conteúdo no indivíduo: mesmo o conteúdo sendo válido e substancial, ele acaba se anulando no indivíduo, a partir dele mesmo. Para o sujeito falta força para poder romper com sua vaidade.

  

Passeio no Parque


Foto: Cumulonimbus, Alison Scarpulla


as nuvens nadam no fundo do lago
ao longe, dispersam-se as vozes no mundo instável

permaneço muda
[pois que todas as coisas levam a memórias de memórias]
a morte individual de cada coisa é toda a solidão

o canto existe desde o início do céu e da terra
para amar é preciso retirar o pó do espelho e
tocar levemente as cordas tensas de profunda melodia.



terça-feira, 20 de maio de 2014

O fuzil de caça

Yasushi Inoue

O Japão tem sempre algumas preciosidades na literatura, em todos os tempos. Uma delas, e que descobri recentemente por acaso, é o primeiro livro de Yasushi Inoue, O Fuzil de Caça, escrito em 1949, no qual por meio de cartas, numa arquitetura textual interessante, um narrador/escritor conta-nos uma história sob a ótica de diversos personagens. A forma sublime como Inoue constrói a narrativa é ao mesmo tempo simples e complexa, e mostra uma habilidade singular [pois de difícil construção, já que são cartas] e sutilmente revela-nos muito da literatura japonesa, a narrativa das nuances, dos silêncios, dos espaços em branco, da elegância.

O narrador é um escritor e nos conta, no início do livro, sobre a carta que recebera de um desconhecido, de nome Josuke Midori, a qual relata a emoção sentida ao ler seu poema intitulado “O fuzil de caça”, publicado na revista O companheiro do caçador, revista oficial do Clube dos Caçadores do Japão, poema este que o teria inspirado a escrever-lhe, pois o poema falava dele mesmo, Josuke Midori.  Na carta, Midori diz ter-se impressionado com a precisão com que o poeta o descreveu não só fisicamente, mas até pareceu adivinhar o seu estado de espírito quando vagueava “pela relva coberta de neve de uma reserva de caça em um vilarejo de fontes termais”.  Alguns dias depois, o narrador recebe outras três cartas, de três mulheres, e que provavelmente teriam sido endereçadas a Josuke Midori.  A beleza deste pequeno livro está nisso: em uma composição sutil, as cartas enviadas pelo desconhecido – o caçador – ao autor/narrador é que irão tecer a verdadeira história do livro e dos personagens : um quadrângulo amoroso entre Josuke (o caçador), Midori, sua esposa, Saiko, a mãe de Midori e o marido de Saiko.

O mais sublime no livro de Inoue é que, num texto curto e nem um pouco rebuscado, as três cartas, em suas vozes particulares, revelam-nos uma intrincada relação entre estes personagens, embora não nos apresente tudo sobre eles, mas apenas aquilo que é possível descrever numa carta. Na sequência em que as cartas são lidas revelam-se pequenas surpresas, num quebra-cabeças que o leitor monta e experimenta aos poucos. Os interstícios da trama são apenas sugeridos e é o leitor quem constrói a história a partir de fragmentos, sugestões. Este é exatamente o charme sutil de Inoue: a ação é quase inexistente, pois são memórias ou fatos contados no ritmo de uma carta íntima, familiar.  E o que poderia ser apenas uma história banal de amor e traição, aos poucos se desenrola numa densa narrativa sobre a solidão humana, a solidão de cada um em suas próprias experiências, representada pela imagem do solitário caçador e seu fusil, no ocaso de sua existência.

Um pequeno livro [tão poucas páginas] que vale cada linha percorrida. Não é um livro de metáforas e imagens elaboradas, mas da sutil linguagem seca e clara das cartas, com as impressões de diferentes personagens que nos remetem a um mundo ao mesmo tempo simples e denso, isso graças à maestria de construção de Inoue.


domingo, 18 de maio de 2014

O julgamento de Frineia

... o silêncio é a melhor morada
    contudo, partilho as horas que descem
    porque a imagem do mundo é mais selvagem.


Phryné devant l"Aréopage, 1861, Jean-Léon Gérôme


Hipérides arranca a túnica de Mnesarete.

Nua e trêmula, a bela cobre o rosto com o braço direito, mas só pode mesmo causar espanto e admiração aos juízes.  Eutias foi o responsável pela acusação contra Mnesarete, de ofensa aos deuses, crime punido com a pena de morte, a exemplo do que já havia ocorrido com a cortesã Teores, acusada por Demóstenes.

Eutias teria cortejado Mnesarete, propondo-lhe:  “O meu amor e cinco talentos ou meu ódio e a morte! Escolhe!”  Mnesarete o recusa, preferindo o orador Hipérides e, quinze dias depois, Eutias a denuncia no Tribunal dos Heliastas, como culpada de ter profanado a majestade das Tesmoforias – festa dedicada a Demeter, criadora da agricultura e do rito civil do matrimônio, a qual era celebrada em muitos lugares da Grécia, especialmente em Atenas.

Hipérides a defendeu com veemente eloquência e, para forçar os argumentos, mostrou o seio cândido da jovem aos juízes que, espantados ante tanta formosura, não puderam senão proclamar a inocência da bela sacerdotisa e mensageira de Afrodite.