segunda-feira, 23 de junho de 2014

"Lachin"





Branco


Tarde de um domingo branco
o lago ondula suavemente
a paisagem ao redor ressona
ao longe, gritos de crianças lembram-me onde estou.

Um sopro cósmico e aqui estamos
pisando misticamente a terra de séculos.

O trágico de tudo isso é saber-se só:
a natureza é indiferente ao homem
o rumor contingente de tudo que nos é externo
replica nos mudos silêncios desse sagrado
como se dissesse:  olhe o espelho.


domingo, 15 de junho de 2014

"Coisa difícil é o Belo"

A Beleza começa a aparecer no mundo quando a matéria criada se diferencia por peso e por número, circunscreve-se em seus contornos, ganha figura e cor; ou seja, a Beleza funda-se na forma que as coisas assumem no processo criativo.
[Umberto Eco, in A História da Beleza, cap. 4 O Cosmo e a Natureza]

Caravaggio, St John The Baptist, 1603.

Tanto se ocupam os filósofos e teóricos de todos os tempos ao Belo, porque defini-lo é tarefa árdua desde sempre. Ao final de seu Hípias maior, Platão afirma: “Coisa difícil é o Belo”. Neste magnífico diálogo, Platão nos apresenta diversas definições do Belo, forçando-nos a imergir numa interessante busca analítica de questões sobre a beleza, sem no entanto esgotá-las. Também é interessante notar que a questão lhe é recorrente, já que aparece em outros diálogos [como o Fédon], e muitas de suas discussões representam uma mudança na direção filosófica iniciada por outros filósofos. Assim, aprendemos em Platão, que o Belo, mais ou menos belo, é belo “porque existe um belo pleno” [no mundo das Ideias]. O Belo é a “ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam temporal, imperfeita e diversamente as coisas empíricas”.

Mais tarde, outras definições do Belo vão tomando outros contornos, dissecados  metafisicamente ou como atributo de um princípio supremo. Em Plotino, o belo é o “resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis”. Em Santo Agostinho é “a beleza das formas que têm sua fonte em Deus”. Em Kant, “a beleza livre, que não depende de nenhum conceito de perfeição ou uso; e a beleza dependente, que depende desses conceitos”. Em Hegel é a “manifestação sensível da ideia” ... ... 

As estreitas relações entre o Belo e o Bom têm origem na antiguidade clássica, e são também, ao longo do tempo,  relacionadas à perfeição ou à contemplação da natureza. Em épocas mais recentes, essas questões são tratadas de maneira diversa, e as definições antes delimitadas por substantivos supremos [como: ideia, perfeição, forma, ser, Deus, ou verdade] vão-se estendendo ou derivando em outras, adjetivadas como qualidades nas quais se manifesta e resplandece, reflete ou se faz presente um princípio supremo: aqui, nas definições do Belo, aparecem também as coisas sensíveis, empíricas, e que não são belas por si mesmas e nem por sua relação com o homem.

Em algumas teorias estéticas modernas, a beleza reina com caráter absoluto sobre o tempo e a história, sobre todos os homens e as coisas concretas, por um lado com independência dos objetos reais e, por outro, na estreita relação humana com ela, e suas implicações. Podem ser reduzidas à Estética e à Arte em algumas. Há teorias em que as definições de beleza fixam sua atenção nas coisas belas, seja por sua realidade própria ou sua condição de objetos para um sujeito, há outras que fixam suas bases naquilo que transcende a realidade, outras buscam sua definição na relação entre a beleza e o sujeito, ou na forma como este é afetado por aquela. Ao longo do tempo, notamos que não apenas nas diferentes épocas, diferentes culturas, o pensamento e estudos sobre o Belo mudam e se concretizam a partir de ideias e percepções distintas, como também muitas vezes entram em conflito ou negam outras concepções, na formulação de questões que se apresentam mais ou menos importantes em determinado contexto, estudo ou análise.

Em seu A História da Beleza, Umberto Eco faz uma compilação de imagens e textos que nos guiam numa reconstrução das múltiplas ideias de Beleza expressas e discutidas desde os gregos até os dias de hoje.  Em certo momento, Eco afirma: “nosso livro pode mesmo ser acusado de relativismo, como se quisesse dizer que aquilo que é considerado belo depende da época e da cultura. É exatamente isso que se pretende dizer”.  Eco também nos diz que não podemos esquecer que, embora as questões mais importantes sobre o Belo, assim como a representação deste [seja na forma de pensamento, literatura, pinturas, desenhos, fotografias, música ou outra arte] tenham chegado até nós a partir da filosofia e do pensamento intelectual, de artistas e cientistas,  há que se pensar na relação entre o Belo e as pessoas comuns, e tentarmos entender a forma como estas se relacionavam com a Beleza. Com esse exemplo, eu não posso deixar de dizer que a intenção deste post é apenas chamar a atenção para mais uma reflexão sobre as diversas concepções da beleza, e da necessidade de estudarmos incansavelmente o assunto, pois que o Belo não pode ser absoluto, fechado em uma definição imutável, mas nele devemos penetrar profundamente.   Ou, nas palavras de Platão: “Coisa difícil é o Belo”. 


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Trilhas


Recomeço no azul profundo da noite —
intactas as areias pisadas ternamente,
a chuva que silencia o vento,
as vagas vazias e sonâmbulas.

Depois da chuva breve, apenas o silêncio dorme :
nenhum tormento no céu,
fardo nenhum nos troncos cinzentos,
nenhuma tentação nas folhas silentes.

Sigo por um caminho, você por outro —
nenhuma bússola para guiar as trilhas desconhecidas
que se bifurcam no acaso concreto e único
dos nossos desertos intersectos.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ophelia

Constantin Meunier, Ophelia

Se a noite vem e o calor foge à pele como a sombra que apaga a luz nas pedras — já não sinto as mãos, e não posso contrariar os sentidos.  [Talvez eu não seja selvagem o bastante]. A lucidez crepita no excesso e o negro frio dessa noite — não sei o que digo, não sei o que penso —  Meu pecado é jogar-me na fogueira dessa chama que me queima lentamente. Ardo em fogo, mas é de gelo que vive meu corpo sem o calor necessário, e ardo como a serpente que envenenou Sarah, ou a loucura que levou Ofélia aos círculos de águas.  Os cabelos, vermelhos, ondulando nas águas turvas da noite. Mas. Isso. É. Literatura. Amor.


Em Louvor da Sombra II

Casa Fujimoto

Volto ao singelo e lindo livro de Tanizaki, porque é essencial.  E porque, de maneira poética e simples, penetramos na sutileza de seu mundo e sua simplicidade, para entender seu título: Em Louvor da Sombra.

Em todo o livro, no qual nos envolve em suas reflexões quando decidiu construir uma nova casa, Tanizaki nos expõe sua sensibilidade e gosto estético. O aspecto da iluminação de ambientes é a essência do texto, e a sombra permeia todas as descrições estéticas : a sombra é elemento indispensável à beleza dos aposentos, dos ambientes e dos utensílios laqueados, que se tornam  um prazer à mesa oriental.  Segundo Tanizaki, as caixinhas, as mesas de apoio e as prateleiras de laca perdem sua beleza e provocam uma perturbadora sensação de espalhafato e de vulgaridade se apreciadas à luz clara.  Perdem sua essência tipicamente oriental. Mas, ao contrário, se for acrescentada a sombra aos aposentos, e o ambiente for iluminado apenas por uma luz mortiça ou a luz de velas, “o espalhafato submergirá e dará lugar a uma sóbria suntuosidade, a beleza e o esplêndido padrão que ocultam suas cores”.

"A tênue luminosidade proveniente de luz cambiante compõe a beleza da laca". Neste ponto Tanizaki também nos revela a diferença entre a porcelana (ocidental), sua tonalidade, sua sonoridade estridente, em contraponto à beleza das tijelas de madeira revestidas com laca negra da cozinha japonesa.  Segundo ele, as sensações provocadas por estas sombrias tijelas são indescritíveis [como uma revelação mística, zen] e estão associadas ao prazer da culinária, do sabor, e não se comparam à sopa servida num prato raso à maneira ocidental.  Tanizaki expõe que “a tônica de sombra também está presente na culinária” e que “com esta mantém uma relação indissociável”.  As sombras da laca “harmonizam-se às trevas e ao colorido dos alimentos servidos”.

Desde os antepassados, os orientais cultivam a sombra no cotidiano, de forma a favorecer o belo.  Os ambientes, muitas vezes nos clássicos padrões da arquitetura japonesa, são desprovidos de itens decorativos, embora estejam envoltos no enigma das sombras. Mesmo hoje, com a moderna arquitetura e com as possibilidades de mesclar materiais para favorecer o acabamento e a praticidade, há a valorização do elemento sombra. Tanizaki conta-nos que são construídas varandas para afastar o sol dos ambientes, e as janelas [zashiki] “são estrategicamente posicionadas de forma a deixar a luz penetrar os ambientes sem feri-los, infiltrando-se vagamente no interior dos aposentos”. 

Assim, o elemento primordial dos aposentos japoneses é simplesmente a dúbia luz indireta, e Tanizaki descreve-nos que a luz espalha-se com tocante serenidade, com uma “claridade baça”, a qual pode ser reforçada pela cor das paredes e por finas camadas de areia colorida. Mesmo que a tonalidade varie de acordo com o aposento, prefere-se usar uma única cor nas paredes, para valorizar a serenidade e a sombra.

Outra sutileza do livro está em perceber como se criam os ambientes usando-se elementos sutis de decoração para valorizar a beleza de forma discreta, por exemplo, os rolos e arranjos florais [usados desde a antiguidade como fatores de elegância e requinte]. Os nichos sombrios realçam ainda mais o valor desses acessórios, da pintura e da caligrafia [também elemento de refinamento], compondo um conjunto harmônico com as sombras.

O livro foi escrito em 1933, e é como se tivesse sido escrito hoje. A beleza do texto está exatamente na narração de como se pode admirar a capacidade dos japoneses de compreender o mistério das sombras e usar o claro-escuro com delicadeza e engenho. As sombras criadas nas “reentrâncias” do aposento criam “a impressão de agudo silêncio, solidão imutável e eterna”, a quietude que caracteriza as sombras japonesas. Tanizaki também fala de teatro, vestuário, e da beleza de sombras feminina.... mas isso fica para outro post. 


domingo, 1 de junho de 2014

“Não nasci para odiar, mas sim para amar.”



Frederic Lord Leighton, Antigone.


“Sem lágrimas, sem amigo,
sem himeneu, desgraçada,
pelo caminho que me espera
sou levada
Da luz o disco sagrado
não posso mais, infeliz,
contemplar.
A minha sorte, sem pranto,
amigo algum a lamenta.”
                                      [Antígona, Sófocles]


É essencial ler Sófocles. Tudo [o pouco] o que restou de suas tragédias. As minhas preferidas são Antígona e Filoctetes, mas também As Traquínias e Electra, ou Édipo Rei e Édipo em Colono. Para não estragar as surpresas e a beleza da leitura, eu só poderia sugerir fragmentos, pois a experiência em Sófocles é única, individual.

Em Antígona, a transgressão limite: o rito, a pureza, o sagrado, o sacrilégio, a mutilação, o amor, a guerra, o poder, o sacrifício, a morte. Tudo o que é excessivo numa natureza arrebatadora e inflexível. Antígora cede aos deuses e à sua essência, não aos seus tiranos. Em Filoctetes, a crueldade e a beleza na ilha de Lemnos : o horror, a chaga, a solidão, o ódio, o sofrimento. A vida dividindo-se entre a injustiça e o absurdo, a piedade, a mentira e a traição. A firmeza de caráter e a dignidade natural : Filoctetes cede aos deuses, não aos seus inimigos.

Sófocles é meu autor de Tragédias preferido. Com ele aprendi que todas as coisas podem ter duas ou mais verdades. Também aprendi [com meus mestres] que Sófocles muda a tradição clássica de seu tempo: ele cria as partes da tragédia de uma forma singular: o prólogo dialogado, o coro como parte do conjunto da obra, o que é uma das coisas mais lindas de suas tragédias.

                    “Muitos prodígios há; porém nenhum maior que o homem.”  [Antígona, Sófocles]