Gian Lorenzo Bernini, escultura, O rapto de Prosérpina.
Durante os últimos 20 anos li
mais sobre Arte e Literatura do que sobre qualquer outro assunto. Aprendi nos
livros e em aulas, palestras e conversas que a Arte muda de tempos em tempos,
resgatando ecos de outras épocas, nuances, ritmos. Mas sempre a Arte é discutida
como linguagem, como forma de conhecimento e expressão do mundo, como marca e
fisionomia de uma época, embora seja intemporal. Mas, em toda e qualquer
definição ou tentativa de conceituação, as artes (todas elas, da pintura à
dança, da literatura ao teatro, da fotografia ao cinema etc) são a imaginação e
o impulso vital do homem transmutados em um poder e uma criação, e seu valor
espiritual, estético ou material expressos na Beleza.
Beleza. Harmonia entre as partes.
Ao pensar nisso, ao deparar-me com a Arte produzida hoje, corro o risco de
interpretar mal toda descontinuidade ou paradoxos produzidos por artistas que,
ao mesmo tempo, me fascinam e incomodam. Não é o caso citá-los ou buscar
exemplos que ilustrem minha perplexidade. Cada um, a seu modo, também deve
deparar-se com uma sensação semelhante ao ver um quadro, assistir um filme, ler
um livro, ouvir uma música. O que interessa neste momento é outro foco: o da Beleza. O que a
Beleza representa e representou durante décadas, séculos ou mesmo desde que o
homem fez a primeira representação no fundo de uma caverna, numa pedra.
Sempre que estou diante da
verdadeira Arte, não importando qual forma de expressão foi escolhida pelo
artista, percebo que a Beleza transparece como uma atmosfera, como um traço que
não pode ser definido nem transcrito em palavras, e essa é verdadeiramente sua
essência. Que mesmo a desvirtuação dos padrões pode revelar a Beleza, como nos
prova a arte grotesca de tantos mestres, marcadas por desarmonia entre as
partes, e o efeito psíquico que exercem suas manchas, suas deformações ou
imagens monstruosas (como Goya, como Brüegel, como Fellini, como Greenaway,
como Kazuo Ono e tantos tantos) e ainda assim nos remetem à Beleza. Entretanto,
durante todo esse tempo que estudei, observei, senti e encontrei momentos dessa
essência, também percebi, paralelamente, que essa capacidade de expressar o
Belo dá lugar ao mercantilismo, à exploração de ideias, à comercialização em
série.
Nem mesmo os ditos intelectuais,
que se esforçam em divulgar e espalhar conceitos e verdades estéticas, escrevem livros, artigos, tratados, nem estes percebem
que a Arte continua a ser a essência do homem [pelo menos teoricamente], mas que
ao contrário do passado, a imagem da arte que se produz e se divulga hoje é sempre para vender alguma coisa. Os defensores do
marketing dirão que a Arte sempre foi vendável e vendida, e sou obrigada a
concordar. Mas não quero correr o risco dessa má interpretação: não é disso que
estou falando. O que tento abordar é o desaparecimento gradual da capacidade de expressar a
essência (o Belo) numa sociedade imediatista e transformada em mercado livre,
que é a nossa. Falo da insipidez, do vazio inessencial, da falta dessa atmosfera
que transpareça o Belo, e é de todos e para todos... e talvez eu fale do que retrata o que hoje é a nossa
sociedade. E então o discurso pode ser entendido como outro: talvez quem não
perceba então sou eu — que a Arte não mais está vinculada à Beleza, como nossa
realidade não o está.
Todo esse pensamento me foi
despertado pelo fato de descobrir que todo o universo sempre foi narrativo e
poético, mas que a atualidade cibertecnográfica [essa palavra existe?] não é
nem narrativa nem poética. Quer queiramos ou não, nosso mundo mudou, e mudou
para sempre: de um universo conceitual, vívido, belo e repleto de poesia transmutou-se
numa realidade fragmentada, fragmentária, instantânea, imediatista, fake,
insípida e grotesca. E, para que não me entendam mal, repleta de uma insipidez
e de um grotesco sem Beleza.
Dessas inquietações, contudo, há
possibilidade de se visualizar um lado bom e um ruim? Talvez. Há sempre os
resistentes, os que transmutam a lama e a podridão para fazer sobre-viver uma
utopia. Esses existiram, existem e existirão [já disse o poeta]. Não quero
parecer aterradoramente reacionária, ou deixar entender que abomino toda forma
de aparato tecnológico-virtual. Não é nada disso. Mas começo a compreender
minha necessidade de preservar, de agarrar-me à narrativa e à poesia que faz
parte de um mundo que começa a se distanciar, a se dissolver. Apenas essa
essência e essa vitalidade podem me fazer entender quem sou e quem me torno à
medida que o tempo passa e a realidade transmuta. E para entender quem você é e
o que pode fazer é preciso estar lúcido. Entretanto, não vivemos tempos de lucidez,
vivemos a loucura exacerbada, a falta de sentido advinda de “sentidos demasiados” bombardeados 24 horas por
dia em nossas mentes: essa droga poderosa, destruidora e onipresente. As
pessoas estão todas “anestesiadas” como se estivessem “loucas demais” por uma
droga invisível, uma superdose, e acreditam que estão “limpas e lúcidas”, que
são donas de si e que têm todo o poder da liberdade, da informação, da
imaginação e da criação. Mas a realidade é outra.
Uma realidade fragmentada, sem
personalidade, permeada por uma rede invisível em que coabitam e convivem verdades
e mentiras num mesmo plano: essa rede gigantesca de informações entrelaçadas e
implausíveis que se tornou o mundo a nossa volta só pode resultar em uma arte
sem Beleza, que nos deixa à deriva, insensíveis, apáticos, inertes. Tão inertes
quando aptos a aprová-la, consumi-la, perpetuá-la sem sequer uma reflexão. Numa
guerra de bombardeios constantes não há lugar para reflexão. Ou se está vivo, ou
se está morto [ : como nos filmes mais
aterradores ou na guerra mais aterradora]. E as pessoas preferem
estar “vivas” [leia-se pessoas = participantes do ciberespaço ou da sociedade de consumo], mesmo que para
isso percam toda lucidez, vitalidade e liberdade: ou seja, na verdade, estão
mortas, de forma acrítica e passiva.
Uma vez li que o melhor tipo de
consciência é a que cerca você. Que te
“empareda” e faz perceber o limite, o ápice. E então você se torna mais forte e
capaz de criar. Nossa realidade não cerca. Ela permeia, penetra nossas mentes,
corrói nossa vontade, destrói nossa imaginação, preenchendo com excessos todo
buraco, todo vazio. Não há lugar para limites, para consciência. Há excessos. Excessos.
E mais excessos.
E por que escrevo essas coisas?
Porque sempre vivi num mundo em que existia Beleza. Era possível enxergar uma
atmosfera no ar, havia uma vontade de melhorar o mundo. Havia Beleza e não
apenas nas Artes, mas no cotidiano, nos ideais — até na feiura aparente havia
Beleza. Para todos. Por isso escrevo. E talvez porque levo tudo muito a sério. E não me
creiam leviana: acredito realmente
nisso. Mas tenho sido frustrada em minhas tentativas de revelar o que quer que
seja. A verdade (e desvantagem) é que não sou alguém respeitável, para que
acreditem em qualquer coisa que eu diga. E a vantagem (ironicamente
ao avesso do senso comum) é que posso rir disso. E continuar tentando.
Mas, voltando ao foco,
vislumbro um futuro estranho, onde não mais exista beleza, não mais existam ideias
inteligentes. Onde tudo será asséptico, virtual, previsível e esteticamente padronizado. Onde reinarão apenas ideias vendáveis. Posso vender minha
palavra? Posso vender meu rabisco de grafite? Posso vender minha ideia de
mundo? Meu blog? Ele é vendável? [Não. Ou espero que não. Mas espero que ele incomode as pessoas ao ponto de fazê-las sair do lugar.]
Por pensar tanto e tanto, temo
esse futuro, porque ele me parece estéril. Porque a Harmonia e a Beleza talvez não possam resistir a essa
fórmula pelos séculos que virão. Será?