domingo, 22 de outubro de 2017

Tormentas


IRAS 16399-0937  [NASA/ESA Hubble Space Telescope image]


Ouço inevitáveis ecos de estrelas distantes
tormentas e explosões em escalar medida
ferozes, dentro e fora de mim fluem abóbadas  cintilantes
átomos de todos os momentos dançam dançam
do passado, do antes mesmo, e do depois do antes  –

eu deveria tocar os desastres que erram 
ousar abri-los com a ponta dos dedos 
e esperar, esperar, esperar 
tudo retornar ao abissal caos primordial

mas, no escuro, minha fronte treme 
astros arrastam-me e dançam ao redor
em vagas de grande força, o silêncio dentro do estrondo
como pétalas que por algum modo mortal crescem

o silêncio é o tempo aberto no caos
já não tenho medo de cair no céu
onde o ar limpo e fino verga-se como músculos distensos
 –  o inevitável dança de novo e de novo, em ínfimos sopros
como uma concha antes do sempre. Aeternum.




quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Precisamos falar sobre Vincent


Capa da biografia 'Van Gogh", David Haziot, da L&PM.


Muitas pessoas associam a imagem de Vincent Van Gogh à de um louco, um alucinado, e interpretam de maneira equivocada o seu olhar sobre o mundo, não compreendendo o apuro técnico magnífico que o artista trabalhou e que expõe com maestria em suas pinceladas.  Essa interpretação errônea, creio eu, afeta o olhar das pessoas sobre a sua obra, desviando-a de sua verdadeira magnitude e projetando-a no limiar da loucura.

Mas Vincent, embora tenha passado por momentos de tensão e desespero e por alguns colapsos nervosos, não foi um louco. Antes disso, foi um visionário muito além de seu tempo, foi um crítico mordaz da arte feita em sua época, foi um aprendiz dedicado das técnicas e que trabalhou de maneira tão intensa ao ponto de se autoanular,  foi um artista que escolheu um áspero e duro caminho para construir a partir de seu próprio sofrimento um olhar terno sobre o mundo. E Vincent o fez, de maneira sublime, radical e extrema.

Para reaprender sobre Vincent, eu sugiro a leitura de uma de suas tantas biografias: a de David Haziot, “Van Gogh”  [há uma edição de bolso, da L&PM].  Haziot nos coloca frente a frente com um outro Vincent, aquele que sai de uma infância atormentada e cresce em cidades diversas, muitas vezes em isolamento total, ou em cambiantes momentos de encontros e desencontros, que mais ainda o atormentavam, pois Vincent era uma pessoa difícil de convivência, embora dócil e humano.

Haziot parte de aspectos de sua infância e vida adulta, da convivência turbulenta com o pai, e das suas relações de amizade, interpretando de maneira nada romântica as suas cartas, as quais são a prova de que Vincent nunca enlouqueceu: suas palavras são sempre lúcidas, transparentes e efetivamente reveladoras de suas aspirações e de sua evolução como artista, tanto na interpretação do mundo quanto no desenvolvimento de sua técnica.

A relação com Theo, seu irmão e mentor, única pessoa que efetivamente compreendeu amorosamente o grande artista por trás da figura aparentemente atormentada, traduz-se nas longas cartas, mescladas com a paciência, a inteligência e a energia de Vincent. Essas cartas, são, por si, uma grande obra, e Haziot menciona suas características reflexivas e filosóficas, além de sua beleza narrativa singular: Vincent também pintava com as palavras.

Para não avançar sobre as surpresas desta biografia, deixo a leitura e a reflexão a vocês. Mas alerto que, para alguns, a revelação do caráter de alguns mitos poderá ser incômoda, ou por vezes decepcionante, principalmente quando percebemos a mitificação de outros grandes artistas que conviveram com Vincent. Em especial Gauguin, pois Haziot desvenda de maneira singular a relação entre os dois, expondo aspectos que foram desconsiderados ou foram escamoteados ao longo do tempo. Vincent se entregou à amizade e à devoção a Gauguin de uma forma extrema, como tudo em sua vida. Mas o resultado dessa devoção foi aterradoramente prejudicial ao artista grandioso que era o próprio Vincent.

Por fim, eu diria que essa biografia nos desperta para um Vincent mais humano, mais alegre, mais sensível, longe do mito de artista maldito e louco, que não lhe cabe, e que foi equivocadamente impresso à sua imagem e à sua obra, como algo excessivo e insano. Vincent nunca foi louco. Em uma carta a Theo, por volta de 1889, no asilo Saint-Paul, em Saint-Rémy de Provence, Vincent escreve:

Nunca tive uma tal oportunidade, aqui a natureza é extraordinariamente bela. [...] Estar suficientemente aquecido para fundir esses dourados e esses tons de flores – não é qualquer um que consegue, é preciso toda a energia e a atenção de um indivíduo inteiro.
Como poderia ser louco quem assim descreve o que sente e pinta? 




terça-feira, 17 de outubro de 2017

Memórias


L´hermafrodite endormie, (sculpture, antiquité Grecque, periode 323-31 a.v J.-C, Musée du Louvre).



Sonhos ásperos. O céu turvo em lilases. Ao despertar, o que acontece? Vejo passar os carros velozes, vejo as pessoas indo a nenhum lugar algum, vejo que há fissuras e é por elas que escolho passar, por entre angústias de despedidas e chegadas. A vida sucessiva, a espera, os esquecimentos. O que somos senão memórias anciãs vagando no espaço estelar? 

Meu sonho vaga como um prenúncio. Esqueço-me do ontem, o sonho múltiplo com cheiro de tuias maceradas, espaços moventes e cambiantes, o sonho em que descem nomes sem nomes de naves transparentes. O que sonho? Pura loucura que habita todo o espaço e todas as vidas de outrora no cinzento abismo estelar. Minha memória reflete o céu e não há nenhuma explicação para isso.

O que estou escrevendo? Seria o sonho a sucessiva imagem habitada de cada haste, de cada ser, de cada grão de areia, de cada nuvem e de cada vida? Que estranha memória eterna e única forma narrativa dos sonhos que nos habitam? 

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Nau

A nau a caminho,
Esqueci-me de partir.

O leme frouxo na maré estival,
as mãos perdidas, o olhar eterno,
os lábios ressecados de sal e sol
e a lembrança
 – a lembrança de seus abissais braços metálicos –
amarras a ancorar-me em tormentas
de febre e amor soterrado.

A embarcação segue, insana
mar adentro, profundo e negro,
o cordame esfarrapado
as velas obtusas, silentes
mas sou eu que naufrago:
vozes eternas sussurram  
sopram, se dobram e se quebram
vozes abafadas no movimento
das espumantes ondas negras –
partiu a nau, para sempre
sem mim.


domingo, 11 de junho de 2017

Jacintos



                                                     Botticelli, Primavera [Detalhe]



O calor arde todos os sóis do mundo
pedras estáticas estalando no Eterno
e eu canto

Canto o pesar de todos os amantes abandonados
canto a alegria dos jacintos que se abrem por instantes
canto o silêncio perdido de todos os cegos

Levamos no peito o leão de obscuras fúrias
e as mulheres todas de mãos negras calcinadas
e o peso

O peso de todas as eternidades individuais
riscadas sob o branco véu da Via Làctea

Os jacintos respiram como um deus adormecido
subindo aos céus para sempre
sua beleza pálida e silente
no puro azul que arde, arde
como cabeleiras loucas e pujantes
que se movem e crescem engolindo os ventos

Os jacintos ardem por instantes de eternidade
desaparecendo alegremente sob as pedras lúbricas.



sexta-feira, 2 de junho de 2017

Luzes

Há um peixe no tanque
de alguma memória antiga
infância remota e desbotada
infância que se perdeu sob giz e pó
infância que se esqueceu.

Mas o peixe insiste
como se escapasse por uma fresta
e escorregasse sob as luzes do tempo.

Tenho um coração estranho
preso às horas, vibra como a corda partida
de um violino abandonado
com um êxtase exagerado
nota que ecoa no escuro azul do céu
–  om om om om om om

Sob a luz do Sol poente
não deveria o peixe fazer a travessia?
As lembranças escorrem como água da chuva
e caem no tanque de lodo:
era um sonho? não era um sonho?

A memória é como a loucura que insiste.
O peixe canta, uma nota no fundo do tanque.


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Dobras II


O céu ardente e o que resta do dia
no enigma de pedra, sombra e nada:
a mariposa silencia
nas cinzas do sol

Vida ubíqua que pulsa e vibra
[repetidamente]
em múltiplos universos
múltiplos sonhos
múltiplos vagares


Brancas cicatrizes 
em pétalas de púrpura
amor que oscila e arde, arde
em prantos e alegrias
alegrias e alegrias
e mágoas e rosas
silêncios e risos.

A pele infinitamente escamada
esfolada e rubra do coração:
este, o segredo do amor e desgosto
que nos carrega até o fim.