sábado, 18 de outubro de 2014

Dobras


Sonho com o céu ardente
o que resta do dia no enigma
de pedra, sombra e nada:
a larva suspensa no fogo lento
dos séculos silenciados
              fogo eterno serpenteando
              nas dobras do tempo.

Na vida ordinária
a mariposa bate as asas
nas cinzas do sol
e árvores que se levantam
trópicas em seu destino
                no silêncio
                no vazio:
vida ubíqua que pulsa e vibra
[repetidamente]
em múltiplos universos.

No coração do homem
queima a rosa, morte breve
nas brancas cicatrizes que se abrem
em pétalas de púrpura
e amor e dor
por todos os caminhos
                   ya no se piensan
                   ya no se sueñan.

  


sábado, 20 de setembro de 2014

Sándor Márai

Detalhe da capa, Edições D.Quixote, 1999.



As velas ardem até ao fim, de Sándor Márai, é outro livro daqueles que iremos reler algumas vezes na vida. Por ser excepcional, essencial. Antes de falar sobre ele, explicarei que no Brasil ele foi publicado com o título As brasas. Não li a tradução brasileira, mas a portuguesa, de Mária Magdolna Demeter. 

Curiosamente, refleti muito sobre esse título no Brasil, As brasas (mesmo sem saber o motivo dessa escolha). Imaginei (só posso imaginar, pois ainda não tive a oportunidade de ler a tradução brasileira) vários motivos para tal: que o tradutor possa ter feito esse paralelo entre a chama e as brasas, ou ainda pelo mito de que títulos curtos vendem mais. Descarto essas conjecturas, pois não posso compreendê-las. A verdade é que As velas ardem até ao fim não só é melhor tradução para o título original, mas também nos revela algo mais profundo: a metáfora das velas ardendo até acabar, a qual é essencial na obra e é de uma beleza ímpar quando chegamos às últimas páginas do livro.

Muitas pessoas escreveram resenhas sobre este livro,  uma história que se passa na Hungria do século XIX, em um castelo nos montes Cárpatos, e fala sobre a amizade de uma vida inteira entre dois homens e uma possível traição. Numa noite, o general Henrik dialoga com seu amigo Konrád sobre o passado. Aos poucos e com uma fluidez e beleza impressionantes, ele lembra ao amigo dos fatos passados, dissecando-os a partir de perguntas às quais quer respostas, e nos narra aquilo que não sabemos de suas vidas e o que aconteceu para que eles permanecessem 41 anos sem se comunicar.

Não posso revelar a história e os acontecimentos que levaram à abrupta separação dos amigos, pois tiraria a surpresa e a profundidade singulares com que estes são narrados. E essa é justamente a beleza do livro. O que mais impressiona no texto de Márai é a forma narrativa, ao mesmo tempo precisa e detalhada, direta e exuberante, feita com tal maestria que nos dá a impressão de não faltar e nem exceder nada: é o essencial, construído com toda a beleza com que a vida pode ser narrada na literatura.

E essa construção narrativa é tão surpreendente que a história ou os fatos revelados, que aparentemente compõem o livro, passam a ocupar um segundo plano, e se transformam em reflexões sobre a vida, a honra, a amizade, esta, nas palavras de Henrik, “a mais nobre relação que pode haver entre os seres vivos humanos”. E, no meu entender, especialmente nas entrelinhas da narrativa de Márai estão reflexões sobre um mundo em que estes eram valores que estavam acima de qualquer coisa, e os homens não eram corrompidos, um mundo o qual ficou no passado. Um mundo que se deteriorou, um mundo aniquilado, ruído, que se desintegrou pelo tempo e a história.  Atravessamos a noite com os dois personagens, compreendendo mais sobre a natureza humana e o amor, a paixão, a música, a nobreza, a riqueza e a pobreza, a fidelidade, a velhice e a morte.

Wagner Campelo escreveu: “o ‘ajuste de contas’ entre Henrik e Konrád é um dos textos mais belos que já tive oportunidade — e prazer! — de ler. A forma coerente com que o general disseca a amizade é impressionante — e, ironicamente, quanto mais ele procura esmiuçar esse sentimento, menos temos certeza do que ele pode significar. Em sua obsessão por respostas, Henrik atravessa a madrugada inquirindo quase impiedosamente seu convidado, tão insistentemente que mal dá chance a Konrad de dizer o que gostaria de ouvir — se é que pretendia mesmo ouvir o que já não soubesse…”

Este pequeno livro, de apenas 153 páginas, também é daqueles que poderemos voltar a falar sob outras perspectivas, e a escrever mais posts sobre ele, pois não se esgota em sua beleza.



domingo, 10 de agosto de 2014

Abismos

Eternos, os astros desaparecem no escuro.
Você está ao meu lado esta noite.
Eu permaneço em silêncio,
sentindo o calor suave da sua pele.
E depois abro os olhos:
não é sonho é sonho:
a transitoriedade que revela
o pulso aberto
a noite densa
imagens cintilando no impossível.

A noite se fecha, o céu se abre:
o que faz esquecer?
O que chamam transcendência?
Os olhos.
Essa espécie de loucura
que nos faz ver tudo e tudo sentir.
Sonhar é ver o abismo do outro lado?

        [Todas as noites eu me confundo com o universo que sou e não tem fim.]



terça-feira, 29 de julho de 2014

Soturno

Foto: Ralph Eugene Meatyard, Boy with White Mask, 1962



Olho todos esses espaços,
essa luz, esse céu e não sei mais.
Minha melancolia é sempre.
E uma dor que não me abandona
nem quando tenho esses ataques lúcidos.
Será que é só uma ilusão?
Devemos esperar mais?

Mito estranho e impensável numa capital em pleno século XXI.
Na sala de jantar os convivas gritam por um deus,
E aguardam o sacrifício em silêncio.
Alguém remove restos de comida da mesa longa e enfeitada,
e continua o ritual.
E a cidade lá fora continua impassível,
e a noite é ainda densa
e um vulto caminha soturnamente, na sombra.
Abro mais os olhos : esqueço os outros,
é você que me interessa.
Ouça.



segunda-feira, 28 de julho de 2014

Nos Penhascos de Mármore


Nos Penhascos de Mármore é um dos mais belos e impressionantes textos que já li. O livro, do alemão Ernst Jünger, foi originalmente lançado em 1939, às vésperas da guerra, e tornou-se um clássico moderno. Contraditoriamente foi considerado antinazista pelos ingleses e profundamente nazista pelos alemães, mas deixo essas meditações aos leitores.

Em breve posfácio, lemos que Jünger lutou com rara bravura na Primeira Guerra Mundial, cuja experiência é descrita magnificamente em Tempestades de Aço, considerado por André Gide como o mais belo livro de guerra já escrito. Sabemos também que Ernst Jünger foi um altivo soldado antes de se tornar escritor, e em seus textos percebe-se a narrativa da vida de lutas, o sacrifício, a dor e o sofrimento em combate, além dos textos em que demonstra sua simpatia pelo nacionalismo. 

Jünger acreditava que a confrontação bélica e um exército forte configuravam a necessidade de mobilização nacionalista dos alemães, pela derrubada da democracia e a construção de uma nova Alemanha, e engajou-se de corpo e alma nessa luta.  Entretanto, alguns anos depois, ao perceber as mudanças de rumo político do nacional-socialismo, Jünger abandonaria os planos militares e se afastaria para tornar-se um escritor. Então passou a viver em pequenas cidades alemãs e dedicou-se a uma vida serena e voltada aos valores humanistas. Em sua biografia consta que sua literatura era muito admirada por Hitler, o qual convidou-o mais de uma vez a integrar um grupo de candidatos ao Parlamento.  Jünger recusou as propostas e, por suas ideias, o general Goebbels quis persegui-lo, mas Hitler, por respeito e admiração ao escritor, ordenou deixá-lo em paz.

Jünger fez uma viagem ao Brasil em 1936, na qual ficara encantado com a exuberância da floresta amazônica, a fauna e a flora brasileiras, as formações rochosas do Rio de Janeiro e as serpentes que observou no Instituto Butantã em São Paulo. Segundo estudiosos, Jünger incorporou esses elementos à magnifica paisagem descrita em Nos Penhascos de Mármore.

Narrado em prosa de rara beleza e estilo, Nos Penhascos de Mármore é uma alegoria da Europa sob a sombra da Segunda Grande Guerra, e revela-nos de maneira sutil e simbólica tanto a realidade [com fina observação da natureza] quanto a devastação e a brutalidade do totalitarismo. É um livro belo em muitos aspectos, e conta-nos de maneira límpida e poética a vida comum e os acontecimentos em um povoado, a partir da observação da natureza e do comportamento humano, ressaltando o valor da ciência e da beleza, e o desenrolar da luta contra o poder destrutivo. É daqueles livros tão bem escritos que as imagens ficam coladas à memória de maneira irreversível, tanto por sua beleza imagética quanto pela verdade subjacente às imagens evocadas. O livro é ao mesmo tempo metáfora e reflexão: pura literatura que também mostra o mundo como o conhecemos. Ou desconhecemos.

Não falarei muito sobre a narrativa, para não adiantar as surpresas, mas Nos Penhascos de Mármore conta-nos a vida de dois irmãos, os quais já combateram em uma guerra, e optaram por viver no alto de um despenhadeiro, de onde, protegidos por serpentes nativas, observam a geografia imaginária da bela cidade de Marina, a qual se estende no vale, embaixo, e mais além as florestas escuras da Mauritânia e as pastagens da Campanha. Os dois são eruditos e amantes da beleza e dos estudos, e passam os dias a recolher espécimes raros de flores e plantas, catalogando-os em sua grande biblioteca. Este idílio, porém, é alterado brutalmente pela violência crescente e aterradora que ameaça sua pacífica realidade, com a aproximação do poder e domínio de um ditador sanguinário. 

E eu paro por aqui, para não estragar a beleza da descoberta. Considero-o não apenas uma sugestão de leitura, mas imprescindível. A Beleza compensa, e cada um que se entregar a este magnífico livro o saberá.



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Adão no Paraíso

Adão e Eva, Albrecht Dürer, óleo sobre madeira, 1507.


O pequeno e belíssimo livro com 3 ensaios de José Ortega y Gasset "Adão no Paraíso e outros ensaios de Estética" traz reflexões importantes sobre Estética, Literatura, Pintura e Arte.  Nestes belos textos, Ortega y Gasset aborda questões relacionadas ao gosto e à tomada de posição em relação à arte, em relação aos estudos de estética e às emoções suscitadas diante da obra. O autor, em linguagem fluida, direta, desconstrói alguns dogmas da tradição crítica, com simplicidade e maestria. 

No primeiro ensaio, Adão no Paraíso, Ortega y Gasset aponta-nos que “há tantas realidades quanto pontos de vista” e, portanto, não se pode crer numa realidade imutável e única com a qual se pode comparar ou definir os conteúdos das obras de arte. Ainda, segundo ele, “toda cultura é artifício”, resultado de uma cadeia de ideias, práticas, pontos de vista e tomadas de posição.  
         
Ortega y Gasset diz-nos que os limites da teoria, a qual reduz a arte a conceitos, exclui o pensamento acerca da origem das emoções diante das obras. A partir da sua experiência e do seu gosto, como espanhol e pensador, passa a compor reflexões que formam a base da sua investigação estética, sem, no entanto, se deixar cair nas armadilhas das verdades absolutas ou irrefletidas. Assim, o filósofo valoriza o sentimento e a emoção diante da obra e, para ilustrá-lo poeticamente, constrói uma interessante metáfora: "Adão foi o primeiro ser que, vivendo, sentiu a si mesmo viver. Para Adão a vida existe como um problema". Assim, para Ortega y Gasset não existe arte sem reflexão, e Adão torna-se o primeiro homem a prová-lo e se diferenciar dos animais. O homem carrega, pois, dentro de si, um problema heroico, trágico, e a arte é o que permitirá resolver esse problema.

Segundo o autor, a estética é uma “operação bastante melancólica” e pretende “encaixar nos quadradinhos dos conceitos a pletora inesgotável da substância artística”. Por outro lado, “não há forma de aprisionar em um conceito a emoção do belo”, já que diante da obra de arte “a observação estética não satisfaça nunca”. “A arte é o reino do sentimento, e dentro da constituição desse reino, o pensamento só pode frequentar o plebeu e o vulgar, só pode representar a vulgaridade.”

Ortega y Gasset analisa ainda outros aspectos: para as ciências, as coisas são casos particulares de leis gerais. "Da tragédia da ciência nasce a arte. Quando os métodos científicos nos abandonam, começam os métodos artísticos". As artes são, portanto, parte do mistério. E o ensaísta vai defini-las pelo que há de particular e irredutível em cada uma: “uma arte que pode se expressar de outra forma não é arte; o significado de um poema traduzido em prosa já não é o poema”. E, em certo ponto, afirma: “mas, para quem tem consciência do que significa uma orientação exata nesses assuntos, a estética vale tanto como a obra de arte”.

Para não esgotar as surpresas desse pequeno e belíssimo livro, termino o post por aqui [sem mencionar os outros dois ensaios]. Voltarei a ele, para reconstruí-lo de outra maneira ou para falar dos olhares e da beleza que brota do olhar dos artistas.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

"Lachin"





Branco


Tarde de um domingo branco
o lago ondula suavemente
a paisagem ao redor ressona
ao longe, gritos de crianças lembram-me onde estou.

Um sopro cósmico e aqui estamos
pisando misticamente a terra de séculos.

O trágico de tudo isso é saber-se só:
a natureza é indiferente ao homem
o rumor contingente de tudo que nos é externo
replica nos mudos silêncios desse sagrado
como se dissesse:  olhe o espelho.


domingo, 15 de junho de 2014

"Coisa difícil é o Belo"

A Beleza começa a aparecer no mundo quando a matéria criada se diferencia por peso e por número, circunscreve-se em seus contornos, ganha figura e cor; ou seja, a Beleza funda-se na forma que as coisas assumem no processo criativo.
[Umberto Eco, in A História da Beleza, cap. 4 O Cosmo e a Natureza]

Caravaggio, St John The Baptist, 1603.

Tanto se ocupam os filósofos e teóricos de todos os tempos ao Belo, porque defini-lo é tarefa árdua desde sempre. Ao final de seu Hípias maior, Platão afirma: “Coisa difícil é o Belo”. Neste magnífico diálogo, Platão nos apresenta diversas definições do Belo, forçando-nos a imergir numa interessante busca analítica de questões sobre a beleza, sem no entanto esgotá-las. Também é interessante notar que a questão lhe é recorrente, já que aparece em outros diálogos [como o Fédon], e muitas de suas discussões representam uma mudança na direção filosófica iniciada por outros filósofos. Assim, aprendemos em Platão, que o Belo, mais ou menos belo, é belo “porque existe um belo pleno” [no mundo das Ideias]. O Belo é a “ideia eterna, perfeita, imutável, da qual participam temporal, imperfeita e diversamente as coisas empíricas”.

Mais tarde, outras definições do Belo vão tomando outros contornos, dissecados  metafisicamente ou como atributo de um princípio supremo. Em Plotino, o belo é o “resplendor de uma luz inteligível nas coisas sensíveis”. Em Santo Agostinho é “a beleza das formas que têm sua fonte em Deus”. Em Kant, “a beleza livre, que não depende de nenhum conceito de perfeição ou uso; e a beleza dependente, que depende desses conceitos”. Em Hegel é a “manifestação sensível da ideia” ... ... 

As estreitas relações entre o Belo e o Bom têm origem na antiguidade clássica, e são também, ao longo do tempo,  relacionadas à perfeição ou à contemplação da natureza. Em épocas mais recentes, essas questões são tratadas de maneira diversa, e as definições antes delimitadas por substantivos supremos [como: ideia, perfeição, forma, ser, Deus, ou verdade] vão-se estendendo ou derivando em outras, adjetivadas como qualidades nas quais se manifesta e resplandece, reflete ou se faz presente um princípio supremo: aqui, nas definições do Belo, aparecem também as coisas sensíveis, empíricas, e que não são belas por si mesmas e nem por sua relação com o homem.

Em algumas teorias estéticas modernas, a beleza reina com caráter absoluto sobre o tempo e a história, sobre todos os homens e as coisas concretas, por um lado com independência dos objetos reais e, por outro, na estreita relação humana com ela, e suas implicações. Podem ser reduzidas à Estética e à Arte em algumas. Há teorias em que as definições de beleza fixam sua atenção nas coisas belas, seja por sua realidade própria ou sua condição de objetos para um sujeito, há outras que fixam suas bases naquilo que transcende a realidade, outras buscam sua definição na relação entre a beleza e o sujeito, ou na forma como este é afetado por aquela. Ao longo do tempo, notamos que não apenas nas diferentes épocas, diferentes culturas, o pensamento e estudos sobre o Belo mudam e se concretizam a partir de ideias e percepções distintas, como também muitas vezes entram em conflito ou negam outras concepções, na formulação de questões que se apresentam mais ou menos importantes em determinado contexto, estudo ou análise.

Em seu A História da Beleza, Umberto Eco faz uma compilação de imagens e textos que nos guiam numa reconstrução das múltiplas ideias de Beleza expressas e discutidas desde os gregos até os dias de hoje.  Em certo momento, Eco afirma: “nosso livro pode mesmo ser acusado de relativismo, como se quisesse dizer que aquilo que é considerado belo depende da época e da cultura. É exatamente isso que se pretende dizer”.  Eco também nos diz que não podemos esquecer que, embora as questões mais importantes sobre o Belo, assim como a representação deste [seja na forma de pensamento, literatura, pinturas, desenhos, fotografias, música ou outra arte] tenham chegado até nós a partir da filosofia e do pensamento intelectual, de artistas e cientistas,  há que se pensar na relação entre o Belo e as pessoas comuns, e tentarmos entender a forma como estas se relacionavam com a Beleza. Com esse exemplo, eu não posso deixar de dizer que a intenção deste post é apenas chamar a atenção para mais uma reflexão sobre as diversas concepções da beleza, e da necessidade de estudarmos incansavelmente o assunto, pois que o Belo não pode ser absoluto, fechado em uma definição imutável, mas nele devemos penetrar profundamente.   Ou, nas palavras de Platão: “Coisa difícil é o Belo”. 


sexta-feira, 13 de junho de 2014

Trilhas


Recomeço no azul profundo da noite —
intactas as areias pisadas ternamente,
a chuva que silencia o vento,
as vagas vazias e sonâmbulas.

Depois da chuva breve, apenas o silêncio dorme :
nenhum tormento no céu,
fardo nenhum nos troncos cinzentos,
nenhuma tentação nas folhas silentes.

Sigo por um caminho, você por outro —
nenhuma bússola para guiar as trilhas desconhecidas
que se bifurcam no acaso concreto e único
dos nossos desertos intersectos.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ophelia

Constantin Meunier, Ophelia

Se a noite vem e o calor foge à pele como a sombra que apaga a luz nas pedras — já não sinto as mãos, e não posso contrariar os sentidos.  [Talvez eu não seja selvagem o bastante]. A lucidez crepita no excesso e o negro frio dessa noite — não sei o que digo, não sei o que penso —  Meu pecado é jogar-me na fogueira dessa chama que me queima lentamente. Ardo em fogo, mas é de gelo que vive meu corpo sem o calor necessário, e ardo como a serpente que envenenou Sarah, ou a loucura que levou Ofélia aos círculos de águas.  Os cabelos, vermelhos, ondulando nas águas turvas da noite. Mas. Isso. É. Literatura. Amor.


Em Louvor da Sombra II

Casa Fujimoto

Volto ao singelo e lindo livro de Tanizaki, porque é essencial.  E porque, de maneira poética e simples, penetramos na sutileza de seu mundo e sua simplicidade, para entender seu título: Em Louvor da Sombra.

Em todo o livro, no qual nos envolve em suas reflexões quando decidiu construir uma nova casa, Tanizaki nos expõe sua sensibilidade e gosto estético. O aspecto da iluminação de ambientes é a essência do texto, e a sombra permeia todas as descrições estéticas : a sombra é elemento indispensável à beleza dos aposentos, dos ambientes e dos utensílios laqueados, que se tornam  um prazer à mesa oriental.  Segundo Tanizaki, as caixinhas, as mesas de apoio e as prateleiras de laca perdem sua beleza e provocam uma perturbadora sensação de espalhafato e de vulgaridade se apreciadas à luz clara.  Perdem sua essência tipicamente oriental. Mas, ao contrário, se for acrescentada a sombra aos aposentos, e o ambiente for iluminado apenas por uma luz mortiça ou a luz de velas, “o espalhafato submergirá e dará lugar a uma sóbria suntuosidade, a beleza e o esplêndido padrão que ocultam suas cores”.

"A tênue luminosidade proveniente de luz cambiante compõe a beleza da laca". Neste ponto Tanizaki também nos revela a diferença entre a porcelana (ocidental), sua tonalidade, sua sonoridade estridente, em contraponto à beleza das tijelas de madeira revestidas com laca negra da cozinha japonesa.  Segundo ele, as sensações provocadas por estas sombrias tijelas são indescritíveis [como uma revelação mística, zen] e estão associadas ao prazer da culinária, do sabor, e não se comparam à sopa servida num prato raso à maneira ocidental.  Tanizaki expõe que “a tônica de sombra também está presente na culinária” e que “com esta mantém uma relação indissociável”.  As sombras da laca “harmonizam-se às trevas e ao colorido dos alimentos servidos”.

Desde os antepassados, os orientais cultivam a sombra no cotidiano, de forma a favorecer o belo.  Os ambientes, muitas vezes nos clássicos padrões da arquitetura japonesa, são desprovidos de itens decorativos, embora estejam envoltos no enigma das sombras. Mesmo hoje, com a moderna arquitetura e com as possibilidades de mesclar materiais para favorecer o acabamento e a praticidade, há a valorização do elemento sombra. Tanizaki conta-nos que são construídas varandas para afastar o sol dos ambientes, e as janelas [zashiki] “são estrategicamente posicionadas de forma a deixar a luz penetrar os ambientes sem feri-los, infiltrando-se vagamente no interior dos aposentos”. 

Assim, o elemento primordial dos aposentos japoneses é simplesmente a dúbia luz indireta, e Tanizaki descreve-nos que a luz espalha-se com tocante serenidade, com uma “claridade baça”, a qual pode ser reforçada pela cor das paredes e por finas camadas de areia colorida. Mesmo que a tonalidade varie de acordo com o aposento, prefere-se usar uma única cor nas paredes, para valorizar a serenidade e a sombra.

Outra sutileza do livro está em perceber como se criam os ambientes usando-se elementos sutis de decoração para valorizar a beleza de forma discreta, por exemplo, os rolos e arranjos florais [usados desde a antiguidade como fatores de elegância e requinte]. Os nichos sombrios realçam ainda mais o valor desses acessórios, da pintura e da caligrafia [também elemento de refinamento], compondo um conjunto harmônico com as sombras.

O livro foi escrito em 1933, e é como se tivesse sido escrito hoje. A beleza do texto está exatamente na narração de como se pode admirar a capacidade dos japoneses de compreender o mistério das sombras e usar o claro-escuro com delicadeza e engenho. As sombras criadas nas “reentrâncias” do aposento criam “a impressão de agudo silêncio, solidão imutável e eterna”, a quietude que caracteriza as sombras japonesas. Tanizaki também fala de teatro, vestuário, e da beleza de sombras feminina.... mas isso fica para outro post. 


domingo, 1 de junho de 2014

“Não nasci para odiar, mas sim para amar.”



Frederic Lord Leighton, Antigone.


“Sem lágrimas, sem amigo,
sem himeneu, desgraçada,
pelo caminho que me espera
sou levada
Da luz o disco sagrado
não posso mais, infeliz,
contemplar.
A minha sorte, sem pranto,
amigo algum a lamenta.”
                                      [Antígona, Sófocles]


É essencial ler Sófocles. Tudo [o pouco] o que restou de suas tragédias. As minhas preferidas são Antígona e Filoctetes, mas também As Traquínias e Electra, ou Édipo Rei e Édipo em Colono. Para não estragar as surpresas e a beleza da leitura, eu só poderia sugerir fragmentos, pois a experiência em Sófocles é única, individual.

Em Antígona, a transgressão limite: o rito, a pureza, o sagrado, o sacrilégio, a mutilação, o amor, a guerra, o poder, o sacrifício, a morte. Tudo o que é excessivo numa natureza arrebatadora e inflexível. Antígora cede aos deuses e à sua essência, não aos seus tiranos. Em Filoctetes, a crueldade e a beleza na ilha de Lemnos : o horror, a chaga, a solidão, o ódio, o sofrimento. A vida dividindo-se entre a injustiça e o absurdo, a piedade, a mentira e a traição. A firmeza de caráter e a dignidade natural : Filoctetes cede aos deuses, não aos seus inimigos.

Sófocles é meu autor de Tragédias preferido. Com ele aprendi que todas as coisas podem ter duas ou mais verdades. Também aprendi [com meus mestres] que Sófocles muda a tradição clássica de seu tempo: ele cria as partes da tragédia de uma forma singular: o prólogo dialogado, o coro como parte do conjunto da obra, o que é uma das coisas mais lindas de suas tragédias.

                    “Muitos prodígios há; porém nenhum maior que o homem.”  [Antígona, Sófocles]



sábado, 24 de maio de 2014

H.


Felice Casorati, Dreaming Of Pomegranates, 1912.




Pássaros nos meus olhos
o noite vem dizer que nada sei

o silêncio não pode aplacar a dor
a dor não pode esquecer a ausência
a ausência não pode fazer mover o mundo

porque nos roubam assim o bem?

as horas estanques
os dedos frios
as flores mudas

imagens dizem que sou louca
mas hoje eu sou apenas mais sozinha.


sexta-feira, 23 de maio de 2014

A Ironia

Foto: Connie Palmen


Volto aos Cursos de Estética de Hegel.

Neste belo texto, Hegel diz-nos que a ironia encontrou seu fundamento na filosofia de Fichte. Estabelece o eu total e abstrato como princípio absoluto do saber, da razão, do conhecimento. Todo o conteúdo que deve valer para o eu só é estabelecido e reconhecido pelo eu. O que é só pode ser através de mim e, dessa maneira, pode ser aniquilado por mim.

Mas se as coisas só podem ser conhecidas e produzidas pelo eu, nada pode então ser considerado em si e para si.  O em si e para si é apenas uma aparência, não sendo verdadeiro. Hegel percebe uma falta de seriedade no agir do eu absoluto fichteano, pois a validade de tudo só se encontra no eu. Nisso, o eu pode criar e destruir indefinidamente, sem ter compromisso com qualquer seriedade. E os outros sujeitos, que não têm a capacidade de apreender a altura do ponto de vista do eu, são limitados, pobres.

Segundo Hegel, seria esse o significado da ironia divina: um eu que se concentra em si mesmo e vive para o seu próprio gozo, se relacionando ironicamente com o em si e para si universal, que só ele, o eu, determina. A partir disso, temos a nulidade de tudo o que é objetivo, exceto a própria subjetividade do eu, a qual, por isso, torna-se oca e vaidosa. Em contrapartida, há a insatisfação do sujeito, que precisa de algo fixo, substancial, o qual não pode conceber, não conseguindo, pois, se libertar da solidão e retraimento em si mesmo. Há a nulidade do conteúdo no indivíduo: mesmo o conteúdo sendo válido e substancial, ele acaba se anulando no indivíduo, a partir dele mesmo. Para o sujeito falta força para poder romper com sua vaidade.

  

Passeio no Parque


Foto: Cumulonimbus, Alison Scarpulla


as nuvens nadam no fundo do lago
ao longe, dispersam-se as vozes no mundo instável

permaneço muda
[pois que todas as coisas levam a memórias de memórias]
a morte individual de cada coisa é toda a solidão

o canto existe desde o início do céu e da terra
para amar é preciso retirar o pó do espelho e
tocar levemente as cordas tensas de profunda melodia.



terça-feira, 20 de maio de 2014

O fuzil de caça

Yasushi Inoue

O Japão tem sempre algumas preciosidades na literatura, em todos os tempos. Uma delas, e que descobri recentemente por acaso, é o primeiro livro de Yasushi Inoue, O Fuzil de Caça, escrito em 1949, no qual por meio de cartas, numa arquitetura textual interessante, um narrador/escritor conta-nos uma história sob a ótica de diversos personagens. A forma sublime como Inoue constrói a narrativa é ao mesmo tempo simples e complexa, e mostra uma habilidade singular [pois de difícil construção, já que são cartas] e sutilmente revela-nos muito da literatura japonesa, a narrativa das nuances, dos silêncios, dos espaços em branco, da elegância.

O narrador é um escritor e nos conta, no início do livro, sobre a carta que recebera de um desconhecido, de nome Josuke Midori, a qual relata a emoção sentida ao ler seu poema intitulado “O fuzil de caça”, publicado na revista O companheiro do caçador, revista oficial do Clube dos Caçadores do Japão, poema este que o teria inspirado a escrever-lhe, pois o poema falava dele mesmo, Josuke Midori.  Na carta, Midori diz ter-se impressionado com a precisão com que o poeta o descreveu não só fisicamente, mas até pareceu adivinhar o seu estado de espírito quando vagueava “pela relva coberta de neve de uma reserva de caça em um vilarejo de fontes termais”.  Alguns dias depois, o narrador recebe outras três cartas, de três mulheres, e que provavelmente teriam sido endereçadas a Josuke Midori.  A beleza deste pequeno livro está nisso: em uma composição sutil, as cartas enviadas pelo desconhecido – o caçador – ao autor/narrador é que irão tecer a verdadeira história do livro e dos personagens : um quadrângulo amoroso entre Josuke (o caçador), Midori, sua esposa, Saiko, a mãe de Midori e o marido de Saiko.

O mais sublime no livro de Inoue é que, num texto curto e nem um pouco rebuscado, as três cartas, em suas vozes particulares, revelam-nos uma intrincada relação entre estes personagens, embora não nos apresente tudo sobre eles, mas apenas aquilo que é possível descrever numa carta. Na sequência em que as cartas são lidas revelam-se pequenas surpresas, num quebra-cabeças que o leitor monta e experimenta aos poucos. Os interstícios da trama são apenas sugeridos e é o leitor quem constrói a história a partir de fragmentos, sugestões. Este é exatamente o charme sutil de Inoue: a ação é quase inexistente, pois são memórias ou fatos contados no ritmo de uma carta íntima, familiar.  E o que poderia ser apenas uma história banal de amor e traição, aos poucos se desenrola numa densa narrativa sobre a solidão humana, a solidão de cada um em suas próprias experiências, representada pela imagem do solitário caçador e seu fusil, no ocaso de sua existência.

Um pequeno livro [tão poucas páginas] que vale cada linha percorrida. Não é um livro de metáforas e imagens elaboradas, mas da sutil linguagem seca e clara das cartas, com as impressões de diferentes personagens que nos remetem a um mundo ao mesmo tempo simples e denso, isso graças à maestria de construção de Inoue.


domingo, 18 de maio de 2014

O julgamento de Frineia

... o silêncio é a melhor morada
    contudo, partilho as horas que descem
    porque a imagem do mundo é mais selvagem.


Phryné devant l"Aréopage, 1861, Jean-Léon Gérôme


Hipérides arranca a túnica de Mnesarete.

Nua e trêmula, a bela cobre o rosto com o braço direito, mas só pode mesmo causar espanto e admiração aos juízes.  Eutias foi o responsável pela acusação contra Mnesarete, de ofensa aos deuses, crime punido com a pena de morte, a exemplo do que já havia ocorrido com a cortesã Teores, acusada por Demóstenes.

Eutias teria cortejado Mnesarete, propondo-lhe:  “O meu amor e cinco talentos ou meu ódio e a morte! Escolhe!”  Mnesarete o recusa, preferindo o orador Hipérides e, quinze dias depois, Eutias a denuncia no Tribunal dos Heliastas, como culpada de ter profanado a majestade das Tesmoforias – festa dedicada a Demeter, criadora da agricultura e do rito civil do matrimônio, a qual era celebrada em muitos lugares da Grécia, especialmente em Atenas.

Hipérides a defendeu com veemente eloquência e, para forçar os argumentos, mostrou o seio cândido da jovem aos juízes que, espantados ante tanta formosura, não puderam senão proclamar a inocência da bela sacerdotisa e mensageira de Afrodite.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Anotação para Ophiucus

A racionalidade empurra-me em direção ao real
mas o canto da noite [sob o céu desse abril]
soa como uma cítara triste

vejo pousar no invisível ser do mundo
a individualidade inerte
o espírito do silêncio
o ideal que não pode ser realizado
a realidade impenetrável :

se há forma humana nas dimensões espaciais
é porque o espírito que habita o sensível
rasga o véu do silêncio supremo
e a natureza exterior 
manifesta-se nos limites da alma [como um outro]
a intervalos regulares.

[Foto: Charlotte Spetalen]


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Em louvor da Sombra

Um belo livro de cabeceira : nele, Junichiro Tanizaki poeticamente descreve elementos sobre iluminação e harmonização de ambientes, a preferência dos orientais pela sombra, pelo escuro e a sobriedade. Neste livro singelo, simples, mas profundo, entendemos porque as instalações japonesas, tanto nas edificações tradicionais ou nas mais modernas transformam-se em ambientes tranquilizadores, harmônicos e nos dão a sensação de comodidade e relaxamento... isso acontece pelo acréscimo de um elemento:  a sombra.

A narrativa sutil e simples de Tanizaki realça o modo de pensar, o gosto e mesmo a literatura e a arte japonesas. Tanizaki defende as tradições e a sensibilidade orientais e esboça uma explicação para o fato de os orientais repelirem os objetos cintilantes ou sempre renovados pelo polimento, característica da civilização ocidental. Os japoneses têm especial apreço pelas marcas deixadas pelo tempo, pelo “embaçamento” natural que o tempo imprime nos objetos, desde a madeira até o cobre ou a prata e o ferro, assim como os chineses.

Tanizaki nos mostra que o sóbrio tom envelhecido dos materiais é o aspecto delicado apreciado por chineses e japoneses. Um exemplo é o estanho, metal leve, brilhante e delgado, que nas mãos dos chineses se transforma “em algo profundo, sombrio e imponente, muito semelhante à tradicional cerâmica japonesa shudei, de coloração castanho avermelhada.” Outro exemplo é a apreciação pela luz mortiça do jade, que se assemelha à atmosfera concentrada de centenas de anos.


A passagem do tempo, gravada nos materiais é escrita como “a sujeira acumulada”, e Tanizaki a expressa da mesma maneira que a preferência por ambientes frios : assim como “o frio estimula a estesia”, a “sujeira estimula a estesia”. Segundo Tanizaki as coisas que os orientais apreciam como belas e requintadas têm uma “parcela de sujeira e desasseio”, pois eles valorizam as marcas de manipulação, a fuligem, a chuva e o vento, pois estes são elementos que “tranquilizam a alma, proporcionam serenidade”.

Um livro essencial, para pensarmos nossa forma ocidental de lidar com os objetos, a matéria : o absurdo peso da velocidade com que descartamos as coisas e tornamos o mundo uma montanha de “lixo”, aquilo que para nós é inútil porque perdeu o brilho, saiu de moda, que desprezamos porque apresentou as marcas do tempo. Não é apenas um livro sobre a estética do olhar, da sombra e a arquitetura japonesas, mas um livro imprescindível para refletir sobre a durabilidade, o tempo, o olhar o mundo.


quinta-feira, 27 de março de 2014

A purificação das paixões

Alguns livros nos fazem melhores porque encantam com o que é absolutamente novo, desconhecido. Outros, porque desconstroem nossa forma rígida de pensar, criando uma fissura capaz de nos levar de volta ao abismo da dúvida, do espanto, da excitação.  Depois de muito tempo, considero estes últimos os mais belos e essenciais.

Bouguereau, "Dante et Virgile au Enfers", 1850.

Nos Cursos de Estética, Hegel diz-nos que “a finalidade da arte está em trazer ao nosso sentido tudo o que possui um lugar no espírito humano. Ela deve usar da riqueza de conteúdo do interior humano e, por meio dela, completar a experiência natural de nossa existência exterior. Ela deve excitar paixões, de maneira que as experiências da vida não nos deixem insensíveis e então possamos alcançar a predisposição para todos os fenômenos”. Mas essa excitação não se dá pela experiência efetiva, e sim apenas por sua aparência, uma vez que a arte coloca ilusoriamente suas produções no lugar da efetividade. Assim, o homem deve exercer o seu poder de representação e intuição através da arte, podendo, inclusive, representar coisas que não são efetivas como se o fossem. A arte deve nos afligir e alegrar, nos comover e abalar.

Hegel  também diz que “a arte deve superar a brutalidade, domar os impulsos, as inclinações e paixões”. A paixão pode apoderar-se do homem, quando este  afirma: “A paixão é mais forte do que eu”. A arte suaviza essa brutalidade pois coloca o homem perante o que ele sente e faz em tal estado singular de paixão. Pela arte o homem toma consciência do que ele é imediatamente, percebendo seus impulsos e inclinações como exteriores a si. Estando esses impulsos objetivamente à sua frente, ele já começa a se libertar deles. Dessa maneira, é um alívio expressar o interior em palavras, imagens, sons e formas. O homem pode, por meio da arte, livrar-se do aprisionamento de um sentimento e se tornar consciente dele como algo que lhe é exterior, com o qual ele apenas deve relacionar-se de modo ideal. A arte coloca o homem fora da prisão da natureza, fazendo-o se deparar consigo mesmo como ser único e vivente, expressivo, sensível. Segundo Hegel, a arte, portanto, também tem como sua finalidade essencial a purificação das paixões, a instrução e o aperfeiçoamento moral.


terça-feira, 25 de março de 2014

Menk kaj tohmi





Constelações

John Swope , Chile 1939

Saint-Pol Roux, o poeta, o velho Druida. Porque sou Solar. E ele é Solar. Aprendi Francês por causa de um físico. Um escorregadio físico, silencioso, taciturno, mas que era uma das poucas pessoas neste planeta capaz de me compreender e me amar. Porque eu queria descobrir a imensidade do céu e compreendê-lo. Por que queria ver o mar azul ao seu lado [em qualquer lugar da França onde o mar silencia] e falar das profundezes negras em que nos lançamos. E acabei por dar no profundo rio de Saint-Pol. Não foi um acaso. Não foi nenhum acaso. Aprendi outras estrelas, outras constelações. Poesia que caiu sobre mim como um meteoro dilacerante. Com a beleza que pode ser essa morte. Meu físico desapareceu... junto com as estrelas, o amor possível ou impossível e tudo o mais. Fiquei só [mas ficou Saint-Pol]. Até o dia final. Até a última letra do meu alfabeto.



sábado, 8 de março de 2014

Simulacros

Foto: Wyatt McCollum
Olhos abertos,
passos austeros
e esquecimentos
vejo pessoas passarem
com seus silêncios e dores e enganos tantos.

De extremo a extremo
as alegrias   se ousam
está sempre nas regiões do cárcere :
ali, onde o ser faminto desespera em sentidos
por não suportar o efêmero.

Mas, na chuva breve,
o sol subitamente se disfarça em outono
 não sei de maior alegria
que este decaimento silencioso e triste
a nos lembrar de tocar com as pontas dos dedos a vida,
essa vida de elementos e sementes
que em síntese prenuncia a morte.

Em toda parte  até no musgo do tempo
ou na deterioração entrópica 
a Beleza floresce.

Por que nos negamos a apreciar o fim?



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Vida

Foto: © Marc Ward, Air & Water, No. 31

A vaidade satisfeita curva-se
ante o espelho embaçado
falseada em sua condição de reflexo.

Não, não se pode reduzir ao derradeiro desejo,
seguindo caprichos, a vida
porque a vida não é expectativa vã
a vida é aquilo que nos destrói
pulsa e fere até o fundo
penetra e toca, como uma vertigem, o vazio
porque é vida.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Üsküdara


Sobre materialismo, individualismo, deterioração


As exigências materiais devoram as mais verdadeiras manifestações da vida. E nosso olhar ocidental-capitalista devora toda e qualquer concepção integral do mundo. Estamos mesmo perdidos, pois não sabemos sequer o que significam nossos próprios passos sobre a Terra, ocupados que estamos em acumular, possuir, desejar. Quando acordo de manhã e percebo essa verdade simples, sinto-me desamparada, não sei o que fazer com esse materialismo que me foi imposto, que me imprimiram como uma marca a fogo. Sem dúvida, ao perceber o equívoco [essa lucidez que torna tudo em torno mais tosco e desesperador] sinto-me impotente, pois há um imenso acúmulo de erros, desastres e destruição os quais é necessário evitar. Mas, irremediavelmente, a verdade é que a teia está tecida em trama tal que é difícil qualquer possibilidade de escape. Sinto-me sufocada pela verdade. Parece que estou à procura daquilo que não pode ser encontrável. E o pior é que me parece que, cedo ou tarde, não há como não estar destinada a colaborar, senão continuar, com toda essa mentira que nos cerca. Isso é triste. O real é medíocre. Recuso e nego essa possibilidade, mas sinto-me impotente porque vivo no que move essas engrenagens.

Não tenho mais tempo para dizer ou não dizer aquilo que não interessa. E não há ouvintes para meus códigos, já que não há como me comunicar com a realidade vigente. Mas estou disposta a romper. Romper com aquilo que creio ser prejudicial a outrem. Não posso absorver tanta mediocridade em silêncio. Começo por perguntar a cada um que casualmente encontro se é possível a contestação aos padrões e ideias que formam o nosso mundo hoje. Só há possibilidade de contestação se há mentes capazes de enxergar algo além da conformidade. Receio que essa seja, claramente, a dificuldade: não há quem não esteja em conformidade com a situação grotesca e assustadora que vivemos. Vivemos a realidade virtual imposta, fatidicamente por uma mídia virtual [ li em algum lugar uma metáfora perfeita: esse o fantasma que tudo quer... ]. Mesmo as questões mais relevantes em torno de uma contradição já está implicitamente deturpada por uma concepção conforme essa mesma situação.

Perguntam-me se não estou sendo simplista. Ou se não divago. Acredito, entretanto, que a liberdade é inseparável da consciência, e isso responde a tal questão. Olhando realisticamente em torno, pode-se perceber que não há ninguém consciente dessa situação, verdadeiramente consciente. Portanto não há liberdade. Portanto todos estão conforme a situação vigente. Como pudemos chegar a essa deterioração total da humanidade? Como pudemos deixar-nos seduzir por um materialismo que nos devora toda moral e nos desarmoniza ao ponto da não consciência?

Tão simples quanto entender a chuva que corre por caminhos abertos em trilhas no chão duro, ou quanto descrever o caminho brilhante que as lesmas deixam num muro tosco, vemos que o indivíduo tornou-se um instrumento das ideias e ambições dos outros, ou se tornou ele próprio um déspota que manipula as energias dos seus semelhantes sem se preocupar um só instante com os direitos do outro. Tornou-se o devorador-destruidor em potência, em nome de uma necessidade de poder e acumulação inócua sem nenhuma responsabilidade com o futuro comum, tornou-se inconsciente do seu papel social. E este indivíduo está de tal modo inserido no processo de recriação dessas engrenagens que é incapaz de perceber o real, tornando-se o repetidor, o cogestor daquilo que alimenta a máquina que ele próprio diz destruir. A merda toda está nessa ideia que convenceram a todos de que um mundo unipolar e hegemônico – iniciado com uma barbaridade a que chamam globalização – pode ser uma evolução no estágio humano. 

          Mas a verdade mais pura, mais verdadeira, já está explícita, é só abrir os olhos e ver. Nesse mundo globalizado, cresce dia a dia a incidência de arbítrio e de violência, surgem agressões de toda espécie, instabilidade, crises de toda natureza, deterioração física e política e cultural dos países, crescem as tensões, a recessão econômica e a estagnação, a concentração de poder estabelece-se por uma atitude de cerceamento da liberdade e terrorismo psicológico, e no campo social nem é preciso comentar a instabilidade financeira replicando-se, o agravo da pobreza, o desemprego em massa, a xenofobia, a expansão da influência do crime organizado, do narcotráfico e da corrupção. Em todas as nações do Planeta evidencia-se tal deterioração. Nós, países da América do Sul, por exemplo, vemos aumentadas as populações urbanas marginalizadas e a violência, apenas evidenciando as disparidades sociais.

E então? Diria que essas palavras já estão esgotadas, que muitos denunciam essa mesma verdade absurda. E então? E então nada acontece? E então, ainda que sejam discutidas à exaustão, nada muda? Posso parecer simplista, e devo admitir que há projetos sinceros que são discutidos, colocados em prática e podem realmente ir na direção contrária dessa deterioração. Não posso ser injusta e reduzir tudo ao mesmo problema. Mas mesmo diante desses projetos e essas iniciativas que tentam, na contramão, frear essa deterioração ou mesmo criar recursos para criar algo bom, a grande maioria da população cai na armadilha da conformidade, do individualismo cego e destruidor, replicam o pior discurso, validam a expansão do mal, tornam-se pequenos corruptores e corruptos em nome de uma insana forma de acumulação, desejo, posse. E então? E então essas são apenas algumas questões para fazer cada um pensar em sua própria relação com seus desejos de acumulação e status. Não tenho respostas para nada. Apenas coloco as questões, nada mais. A mim, são importantes, pois preciso encontrar uma forma de escape, de negar tudo isso, pois há um imenso acúmulo de erros, desastres e destruição os quais é necessário evitar. E isso só pode começar em cada um.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As invenções do abismo

Albert Renger-Patzsch - Buchenlandschaft (Forest), 1936

Alguns caminhos nos ligam a pessoas singulares, brilhantes, loucas.  Aquelas com quem nos desvencilhamos da nossa porção terrena e penetramos no inominável.  Mas, em geral, essas pessoas ficam para sempre dentro de nós, embora desapareçam fisicamente, ou pelo menos se distanciam o suficiente para que não possamos tocá-las. Tenho uma dúzia delas em mim, e a Terra pode girar, e o Sol escurecer, que ainda assim elas estarão bem perto. Dentro. Nas profundezas da mente.  Uma dessas pessoas desapareceu. Deixou algo tão profundo e denso em mim que às vezes deixo de me ser, para ser a experiência que ela ainda é, sob a terrosa e áspera superfície do sonho.

Porque a beleza e tudo o que ela me ensinou nunca esteve na superfície, mas mais embaixo, nos abismos escuros nos quais eu tive que penetrar para entender sua lógica. Meus olhos sempre veem distante demais, meus olhos cegam demais ao calor da luz que define seus contornos, meus olhos que veem  a música, o toque elétrico na ressonância da corda tensa e do abismo. Meus olhos que vertem lágrimas que nunca mais terão sal, porque escolhi o caminho inverso do amor. Minhas águas purificadas, águas que não se tornam lodosas nunca, porque assim espero para nelas ver suas mãos transparentes a afundarem imaculadas, meus olhos que vertem águas enquanto morro a cada segundo, a cada grão de areia perdido para sempre no buraco da ampulheta, a cada passo em direção ao fundo, a cada palmo conquistado.

A beleza e a arte me penetram de uma forma densa, e quebram a minha resistência, fragmentam-me ao ponto da esquizofrenia, do abismo, da forma sem forma. E algumas pessoas, estranhamente, permanecem nesse mundo avesso, cintilante e à beira do abismo.