Capa da biografia 'Van Gogh", David Haziot, da L&PM.
Muitas pessoas
associam a imagem de Vincent Van Gogh à de um louco, um alucinado, e interpretam
de maneira equivocada o seu olhar sobre o mundo, não compreendendo o apuro técnico magnífico que o artista trabalhou e que expõe com maestria em suas
pinceladas. Essa interpretação errônea,
creio eu, afeta o olhar das pessoas sobre a sua obra, desviando-a de sua
verdadeira magnitude e projetando-a no limiar da loucura.
Mas Vincent,
embora tenha passado por momentos de tensão e desespero e por alguns colapsos
nervosos, não foi um louco. Antes disso, foi um visionário muito além de seu
tempo, foi um crítico mordaz da arte feita em sua época, foi um aprendiz dedicado das técnicas e que trabalhou de maneira tão intensa ao ponto de se autoanular, foi um artista que escolheu um áspero e duro
caminho para construir a partir de seu próprio sofrimento um olhar terno
sobre o mundo. E Vincent o fez, de maneira sublime, radical e extrema.
Para reaprender
sobre Vincent, eu sugiro a leitura de uma de suas tantas biografias: a de David
Haziot, “Van Gogh” [há uma edição de bolso, da
L&PM]. Haziot nos coloca frente a
frente com um outro Vincent, aquele que sai de uma infância atormentada e cresce
em cidades diversas, muitas vezes em isolamento total, ou em cambiantes momentos
de encontros e desencontros, que mais ainda o atormentavam, pois Vincent era uma
pessoa difícil de convivência, embora dócil e humano.
Haziot parte de
aspectos de sua infância e vida adulta, da convivência turbulenta com o pai, e
das suas relações de amizade, interpretando de maneira nada romântica as suas
cartas, as quais são a prova de que Vincent nunca enlouqueceu: suas palavras são
sempre lúcidas, transparentes e efetivamente reveladoras de suas aspirações e de
sua evolução como artista, tanto na interpretação do mundo quanto no desenvolvimento de sua
técnica.
A relação com
Theo, seu irmão e mentor, única pessoa que efetivamente compreendeu amorosamente
o grande artista por trás da figura aparentemente atormentada, traduz-se nas
longas cartas, mescladas com a paciência, a inteligência e a energia de
Vincent. Essas cartas, são, por si, uma grande obra, e Haziot menciona suas
características reflexivas e filosóficas, além de sua beleza narrativa singular:
Vincent também pintava com as palavras.
Para não avançar
sobre as surpresas desta biografia, deixo a leitura e a reflexão a vocês. Mas
alerto que, para alguns, a revelação do caráter de alguns mitos poderá ser
incômoda, ou por vezes decepcionante, principalmente quando percebemos a
mitificação de outros grandes artistas que conviveram com Vincent. Em especial Gauguin, pois Haziot desvenda de maneira singular a relação entre os dois, expondo aspectos que foram desconsiderados ou foram escamoteados ao
longo do tempo. Vincent se entregou à amizade e à devoção a Gauguin de uma
forma extrema, como tudo em sua vida. Mas o resultado dessa devoção foi
aterradoramente prejudicial ao artista grandioso que era o próprio Vincent.
Por fim, eu diria
que essa biografia nos desperta para um Vincent mais humano, mais alegre, mais sensível,
longe do mito de artista maldito e louco, que não lhe cabe, e que foi
equivocadamente impresso à sua imagem e à sua obra, como algo excessivo e
insano. Vincent nunca foi louco. Em uma carta a Theo, por volta de 1889, no asilo
Saint-Paul, em Saint-Rémy de Provence, Vincent escreve:
Nunca
tive uma tal oportunidade, aqui a natureza é extraordinariamente bela. [...]
Estar suficientemente aquecido para fundir esses dourados e esses tons de
flores – não é qualquer um que consegue, é preciso toda a energia e a atenção
de um indivíduo inteiro.
Como poderia ser
louco quem assim descreve o que sente e pinta?