domingo, 11 de junho de 2017

Jacintos



                                                     Botticelli, Primavera [Detalhe]



O calor arde todos os sóis do mundo
pedras estáticas estalando no Eterno
e eu canto

Canto o pesar de todos os amantes abandonados
canto a alegria dos jacintos que se abrem por instantes
canto o silêncio perdido de todos os cegos

Levamos no peito o leão de obscuras fúrias
e as mulheres todas de mãos negras calcinadas
e o peso

O peso de todas as eternidades individuais
riscadas sob o branco véu da Via Làctea

Os jacintos respiram como um deus adormecido
subindo aos céus para sempre
sua beleza pálida e silente
no puro azul que arde, arde
como cabeleiras loucas e pujantes
que se movem e crescem engolindo os ventos

Os jacintos ardem por instantes de eternidade
desaparecendo alegremente sob as pedras lúbricas.



sexta-feira, 2 de junho de 2017

Luzes

Há um peixe no tanque
de alguma memória antiga
infância remota e desbotada
infância que se perdeu sob giz e pó
infância que se esqueceu.

Mas o peixe insiste
como se escapasse por uma fresta
e escorregasse sob as luzes do tempo.

Tenho um coração estranho
preso às horas, vibra como a corda partida
de um violino abandonado
com um êxtase exagerado
nota que ecoa no escuro azul do céu
–  om om om om om om

Sob a luz do Sol poente
não deveria o peixe fazer a travessia?
As lembranças escorrem como água da chuva
e caem no tanque de lodo:
era um sonho? não era um sonho?

A memória é como a loucura que insiste.
O peixe canta, uma nota no fundo do tanque.