domingo, 23 de dezembro de 2018

Tempo


"O tique-taque de nossos relógios é tão grosseiro, tão mecanicamente contido que não temos ouvidos capazes de ouvir o tempo que passa." [Gaston Bachelard, A poética do Espaço]

A beleza floresce em tudo, na chuva breve, nas pedras calcinadas, no musgo do tempo, na deterioração entrópica, na morte. A vida, essa vida de elementos e sementes nos passa despercebida, contida, nos escapa na ponta dos dedos porque estamos ligados irremediavelmente ao tempo dos relógios, à marcação instituída, à pressa do dinheiro. Somos incapazes de ouvir o verdadeiro tempo que passa, se disfarçando em outonos e primaveras, decaindo triste e belamente na síntese que prenuncia a morte. Essa outra beleza, que negamos, por representar o fim. Fim? Não há fim no passar silencioso do tempo, nem no barulho ensurdecedor dessa catástrofe. Não sei de maior alegria que aceitar esse decaimento, que absorver o insólito clarão da manhã, no cinza de nuvens densas que roubam o azul como espelhos sujos, no dia que se perde em abandonos. Para ouvir o tempo é preciso que os sentidos se destoem e se percam naquilo que perece sem resposta.

Foto: LoboStudo, Hamburg/Unsplash.





sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Lachrimae Caravaggio




Black hole


No céu de novembro
trêmulas esferas cintilantes
nenhum sinal, nenhuma dor
nenhum verso estanque
: a pele áspera e escovada do tempo
apenas silencia no turbilhão etéreo e móvel
da harmonia do mundo.

No íntimo das coisas a espera amorfa
a sublime névoa da semente da vida
única e eterna, vibra.
No exterior das coisas o silêncio escandido
a posse do tempo e o bater de címbalos
que, sombrios, escorrem em direção à luz.







terça-feira, 25 de setembro de 2018


Vincent van Gogh, Ramos de flor-de-amêndoa, San Rémy, 1890




É preciso ser mais que o excesso do mundo, é preciso ser mais que o prazer absorto, é preciso mirar outros olhos, palpáveis, líquidos, mudos, quietos como se a dizer “jamais entenderei seus versos”, é preciso atirar a pedra de uma palavra que soe como música ardente, como o voo de timbres gastos e surdos, replicantes como  gravetos imóveis no tempo, roucos e ásperos de um dia terem respirado o ar da manhã, é preciso que a lua morra no horizonte, menos brilhante que os seus olhos de noites encobertas, olhos de soleiras vazias e portas entreabertas, olhos de jasmins azuis, olhos de cão no duro inverno de eclipses invisíveis e fantasias polares alucinadas, é preciso não ausentar-se dos versos – estar imóvel no tempo como a dor humana que se crispa ao vento cortante de amores delirantes, é preciso não fazer poemas para o espelho, é preciso romper as barreiras e tocar o eterno : não há música que penetre esse olhar : um poema não flutua sobre o mar, pois nada deve significar.



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.
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o silêncio guardo 
nas nebulosas retinas 
perco-me na pressa das horas 
esqueço o que os olhos não alcançam 

lá fora o céu recria a pedra na densa neblina 
e lágrimas descem do teto negro na mina abandonada e fria 
estalactites de um tempo outro, como glandes petrificadas 

de mim, que desejei a morte no oceano 
nada lembra 
nem sinos nem trombetas 
nem satélites nem feitiços 

sob o céu cinzento penso no que não estou 
um buraco mediterrâneo no peito 
a suave brisa assovia uma melodia áspera: 





...



[...]




...porque a vida transcorre em lentidão, e no escuro perdura, em ínfimos sopros. Por isso, talvez, inútil seja a desmedida.





..
Kalliope Amorphous, in Dreams, 2012.








segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Damnation (1987), Bela Tarr.










Homs


Carrega a mão
o pouco trigo
colhido com sangue.

                       A chuva cai
                       a gota que volta
                       à terra
                       que suga
                       a fome.

       Que felicidade há
       quando não mais há
       felicidade alguma?

                      O céu derrama
                      seu pranto,
                      o que não consegui.

       Tudo retorna
       ao que é:
       o círculo perfeito
       a terra seca
       o ar límpido
       as águas eternas
       o fogo.
                                                         
                                                                          Capua Leg.