sábado, 20 de setembro de 2014

Sándor Márai

Detalhe da capa, Edições D.Quixote, 1999.



As velas ardem até ao fim, de Sándor Márai, é outro livro daqueles que iremos reler algumas vezes na vida. Por ser excepcional, essencial. Antes de falar sobre ele, explicarei que no Brasil ele foi publicado com o título As brasas. Não li a tradução brasileira, mas a portuguesa, de Mária Magdolna Demeter. 

Curiosamente, refleti muito sobre esse título no Brasil, As brasas (mesmo sem saber o motivo dessa escolha). Imaginei (só posso imaginar, pois ainda não tive a oportunidade de ler a tradução brasileira) vários motivos para tal: que o tradutor possa ter feito esse paralelo entre a chama e as brasas, ou ainda pelo mito de que títulos curtos vendem mais. Descarto essas conjecturas, pois não posso compreendê-las. A verdade é que As velas ardem até ao fim não só é melhor tradução para o título original, mas também nos revela algo mais profundo: a metáfora das velas ardendo até acabar, a qual é essencial na obra e é de uma beleza ímpar quando chegamos às últimas páginas do livro.

Muitas pessoas escreveram resenhas sobre este livro,  uma história que se passa na Hungria do século XIX, em um castelo nos montes Cárpatos, e fala sobre a amizade de uma vida inteira entre dois homens e uma possível traição. Numa noite, o general Henrik dialoga com seu amigo Konrád sobre o passado. Aos poucos e com uma fluidez e beleza impressionantes, ele lembra ao amigo dos fatos passados, dissecando-os a partir de perguntas às quais quer respostas, e nos narra aquilo que não sabemos de suas vidas e o que aconteceu para que eles permanecessem 41 anos sem se comunicar.

Não posso revelar a história e os acontecimentos que levaram à abrupta separação dos amigos, pois tiraria a surpresa e a profundidade singulares com que estes são narrados. E essa é justamente a beleza do livro. O que mais impressiona no texto de Márai é a forma narrativa, ao mesmo tempo precisa e detalhada, direta e exuberante, feita com tal maestria que nos dá a impressão de não faltar e nem exceder nada: é o essencial, construído com toda a beleza com que a vida pode ser narrada na literatura.

E essa construção narrativa é tão surpreendente que a história ou os fatos revelados, que aparentemente compõem o livro, passam a ocupar um segundo plano, e se transformam em reflexões sobre a vida, a honra, a amizade, esta, nas palavras de Henrik, “a mais nobre relação que pode haver entre os seres vivos humanos”. E, no meu entender, especialmente nas entrelinhas da narrativa de Márai estão reflexões sobre um mundo em que estes eram valores que estavam acima de qualquer coisa, e os homens não eram corrompidos, um mundo o qual ficou no passado. Um mundo que se deteriorou, um mundo aniquilado, ruído, que se desintegrou pelo tempo e a história.  Atravessamos a noite com os dois personagens, compreendendo mais sobre a natureza humana e o amor, a paixão, a música, a nobreza, a riqueza e a pobreza, a fidelidade, a velhice e a morte.

Wagner Campelo escreveu: “o ‘ajuste de contas’ entre Henrik e Konrád é um dos textos mais belos que já tive oportunidade — e prazer! — de ler. A forma coerente com que o general disseca a amizade é impressionante — e, ironicamente, quanto mais ele procura esmiuçar esse sentimento, menos temos certeza do que ele pode significar. Em sua obsessão por respostas, Henrik atravessa a madrugada inquirindo quase impiedosamente seu convidado, tão insistentemente que mal dá chance a Konrad de dizer o que gostaria de ouvir — se é que pretendia mesmo ouvir o que já não soubesse…”

Este pequeno livro, de apenas 153 páginas, também é daqueles que poderemos voltar a falar sob outras perspectivas, e a escrever mais posts sobre ele, pois não se esgota em sua beleza.