terça-feira, 25 de setembro de 2018


Vincent van Gogh, Ramos de flor-de-amêndoa, San Rémy, 1890




É preciso ser mais que o excesso do mundo, é preciso ser mais que o prazer absorto, é preciso mirar outros olhos, palpáveis, líquidos, mudos, quietos como se a dizer “jamais entenderei seus versos”, é preciso atirar a pedra de uma palavra que soe como música ardente, como o voo de timbres gastos e surdos, replicantes como  gravetos imóveis no tempo, roucos e ásperos de um dia terem respirado o ar da manhã, é preciso que a lua morra no horizonte, menos brilhante que os seus olhos de noites encobertas, olhos de soleiras vazias e portas entreabertas, olhos de jasmins azuis, olhos de cão no duro inverno de eclipses invisíveis e fantasias polares alucinadas, é preciso não ausentar-se dos versos – estar imóvel no tempo como a dor humana que se crispa ao vento cortante de amores delirantes, é preciso não fazer poemas para o espelho, é preciso romper as barreiras e tocar o eterno : não há música que penetre esse olhar : um poema não flutua sobre o mar, pois nada deve significar.



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o silêncio guardo 
nas nebulosas retinas 
perco-me na pressa das horas 
esqueço o que os olhos não alcançam 

lá fora o céu recria a pedra na densa neblina 
e lágrimas descem do teto negro na mina abandonada e fria 
estalactites de um tempo outro, como glandes petrificadas 

de mim, que desejei a morte no oceano 
nada lembra 
nem sinos nem trombetas 
nem satélites nem feitiços 

sob o céu cinzento penso no que não estou 
um buraco mediterrâneo no peito 
a suave brisa assovia uma melodia áspera: 





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[...]




...porque a vida transcorre em lentidão, e no escuro perdura, em ínfimos sopros. Por isso, talvez, inútil seja a desmedida.





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Kalliope Amorphous, in Dreams, 2012.