terça-feira, 28 de janeiro de 2014

As invenções do abismo

Albert Renger-Patzsch - Buchenlandschaft (Forest), 1936

Alguns caminhos nos ligam a pessoas singulares, brilhantes, loucas.  Aquelas com quem nos desvencilhamos da nossa porção terrena e penetramos no inominável.  Mas, em geral, essas pessoas ficam para sempre dentro de nós, embora desapareçam fisicamente, ou pelo menos se distanciam o suficiente para que não possamos tocá-las. Tenho uma dúzia delas em mim, e a Terra pode girar, e o Sol escurecer, que ainda assim elas estarão bem perto. Dentro. Nas profundezas da mente.  Uma dessas pessoas desapareceu. Deixou algo tão profundo e denso em mim que às vezes deixo de me ser, para ser a experiência que ela ainda é, sob a terrosa e áspera superfície do sonho.

Porque a beleza e tudo o que ela me ensinou nunca esteve na superfície, mas mais embaixo, nos abismos escuros nos quais eu tive que penetrar para entender sua lógica. Meus olhos sempre veem distante demais, meus olhos cegam demais ao calor da luz que define seus contornos, meus olhos que veem  a música, o toque elétrico na ressonância da corda tensa e do abismo. Meus olhos que vertem lágrimas que nunca mais terão sal, porque escolhi o caminho inverso do amor. Minhas águas purificadas, águas que não se tornam lodosas nunca, porque assim espero para nelas ver suas mãos transparentes a afundarem imaculadas, meus olhos que vertem águas enquanto morro a cada segundo, a cada grão de areia perdido para sempre no buraco da ampulheta, a cada passo em direção ao fundo, a cada palmo conquistado.

A beleza e a arte me penetram de uma forma densa, e quebram a minha resistência, fragmentam-me ao ponto da esquizofrenia, do abismo, da forma sem forma. E algumas pessoas, estranhamente, permanecem nesse mundo avesso, cintilante e à beira do abismo.


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