terça-feira, 20 de maio de 2014

O fuzil de caça

Yasushi Inoue

O Japão tem sempre algumas preciosidades na literatura, em todos os tempos. Uma delas, e que descobri recentemente por acaso, é o primeiro livro de Yasushi Inoue, O Fuzil de Caça, escrito em 1949, no qual por meio de cartas, numa arquitetura textual interessante, um narrador/escritor conta-nos uma história sob a ótica de diversos personagens. A forma sublime como Inoue constrói a narrativa é ao mesmo tempo simples e complexa, e mostra uma habilidade singular [pois de difícil construção, já que são cartas] e sutilmente revela-nos muito da literatura japonesa, a narrativa das nuances, dos silêncios, dos espaços em branco, da elegância.

O narrador é um escritor e nos conta, no início do livro, sobre a carta que recebera de um desconhecido, de nome Josuke Midori, a qual relata a emoção sentida ao ler seu poema intitulado “O fuzil de caça”, publicado na revista O companheiro do caçador, revista oficial do Clube dos Caçadores do Japão, poema este que o teria inspirado a escrever-lhe, pois o poema falava dele mesmo, Josuke Midori.  Na carta, Midori diz ter-se impressionado com a precisão com que o poeta o descreveu não só fisicamente, mas até pareceu adivinhar o seu estado de espírito quando vagueava “pela relva coberta de neve de uma reserva de caça em um vilarejo de fontes termais”.  Alguns dias depois, o narrador recebe outras três cartas, de três mulheres, e que provavelmente teriam sido endereçadas a Josuke Midori.  A beleza deste pequeno livro está nisso: em uma composição sutil, as cartas enviadas pelo desconhecido – o caçador – ao autor/narrador é que irão tecer a verdadeira história do livro e dos personagens : um quadrângulo amoroso entre Josuke (o caçador), Midori, sua esposa, Saiko, a mãe de Midori e o marido de Saiko.

O mais sublime no livro de Inoue é que, num texto curto e nem um pouco rebuscado, as três cartas, em suas vozes particulares, revelam-nos uma intrincada relação entre estes personagens, embora não nos apresente tudo sobre eles, mas apenas aquilo que é possível descrever numa carta. Na sequência em que as cartas são lidas revelam-se pequenas surpresas, num quebra-cabeças que o leitor monta e experimenta aos poucos. Os interstícios da trama são apenas sugeridos e é o leitor quem constrói a história a partir de fragmentos, sugestões. Este é exatamente o charme sutil de Inoue: a ação é quase inexistente, pois são memórias ou fatos contados no ritmo de uma carta íntima, familiar.  E o que poderia ser apenas uma história banal de amor e traição, aos poucos se desenrola numa densa narrativa sobre a solidão humana, a solidão de cada um em suas próprias experiências, representada pela imagem do solitário caçador e seu fusil, no ocaso de sua existência.

Um pequeno livro [tão poucas páginas] que vale cada linha percorrida. Não é um livro de metáforas e imagens elaboradas, mas da sutil linguagem seca e clara das cartas, com as impressões de diferentes personagens que nos remetem a um mundo ao mesmo tempo simples e denso, isso graças à maestria de construção de Inoue.


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