domingo, 12 de janeiro de 2014

Factum


Meu destino é um não encadeamento de fatos. Supostamente abro as cortinas e espio a noite. Nuvem densa de poeira no ar, a cidade está desperta. Globos de luz distantes distantes demais e tanto. Nossa pequenez me surpreende enquanto. Coração disparado. Aviões. Um canto rouco de ave noturna. A solidão é a ordem imutável do universo. Eu prossigo minha tarefa de espiã, a noite espera. Quiçá possa desejar que sintas perto minha presença.
Palisa, numa noite como essa, perscrutaria o céu. Como eu, observaria os seres eternos. O momento em que nos encontramos com o outro e o momento em que dele nos despedimos são os dois grandes instantes da vida. Foi deus que colocou o amor entre esses dois instantes? [Perguntou-me A.]
Um desvio ocular faz-me ver as luzes em duplo. A noite está quente e um vento morno rasteja rente à grama. Uma coruja mora no telhado da minha varanda, e todos os dias deixa seu rastro na minha porta. E todos os dias tenho que lavar sua sujeira. Bela sujeira. E todos os dias acordo às três e quinze, com seu pio assustador.
Vejo os pontos em duplo no céu negro: não somos capazes de perceber suas grandes alterações orbitais, seu nascimento e sua morte. É como se o tempo estivesse parado no céu, para nossos olhos insignificantes: não podemos ver sua evolução cíclica, seu aniquilamento. O corpo e o coração foram em nós destinados a amar, mas somos destinados também a ver nosso próprio aniquilamento. 


3 comentários:

  1. Pensei que esses predadores sobre o teu telhado se chamassem gaviões. Mas é lógico que a varanda é ficcional, assim como as corujas.

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    1. Na verdade esse texto foi escrito em 2003. Uma coruja, literalmente, vivia no telhado da varanda da casa onde eu morava. E habitava minhas madrugadas insones. O tempo está parado em minhas veias, assim como Palisa está na órbita do meu olhar eterno esse céu.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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